Foram os sapatos. Foi a primeira coisa que Denise viu, quando ele entrou.
Uma cor indefinida. Bege? Café com leite? Leite queimado? Doce de leite, tal
qual sua mãe fazia, no tacho de cobre comprado dos ciganos? Viu mesmo antes que
ele dissesse: Olha que belezinha? Que conforto? Parado ali, na porta da
cozinha, a espera de um aplauso que ele mesmo se concedeu, Joel ria com todos
os dentes, batendo as mãos uma contra a outra, o anel de ouro e rubi faiscando.
Só eu mesmo, só eu para fazer uma comprinha destas! Que conforto! Que
belezinha! E que precinho! Foram os sapatos, pensou Denise, mais tarde,
refletindo e ainda ouvindo o choc choc da colher batendo na tigela de louça,
misturando-se com o som das exclamações no diminutivo. Fantástico é o show da
vida, sem explicações. Como se justificar? Não tentou. Às vezes, ela mesma,
quando pensava achava a situação ridícula. Um homem, Joel, seu marido, entra
pela porta da cozinha como faz sempre que chega antes da noite. Ela, Denise,
sua mulher, está ali também, como sempre, nesses últimos anos, preparando
qualquer coisinha para o nosso jantarzinho. Ele fala. Ela escuta, será que
escuta? Nem sabe realmente se foi isso mesmo que foi dito. Agita os braços.
Penteia o cabelo com o pente de osso, sem se incomodar com onde será que vão
cair os fios de seu cabelo mal lavado. Coça o ouvido com o mindinho, unha comprida, será que pra isso? Limpa,
esfregando na lapela do terno berrante brilhante, o dedo sujo. Funga. Lambisca.
Faz tudo o que sempre fez. Ele. Ela não. Fica calada. Absorta. Enquanto bate a
omelete, se lembra. Os sonhos. O chá das cinco em um aconchegante cottage
inglês. O jantar comemorativo, a luz de velas e regado a champanhe borbulhante
em finas taças de cristal, em um restaurante francês. Os fins de tarde no
remanso de uma fazenda quatrocentona. As férias na Riviera. As noites
caribenhas...cha...cha...cha... As premiéres. Vestidos exclusivos. Jóias caras.
Quadros. Livros. Finesse. As. Os. A O. Tantos lugares, situações. Se lembrou
dos sonhos, acordando em um pesadelo. Foram os sapatos, ela não pára de
repetir, enquanto pensa e lembra, relembra, Joelzinho, a boca aberta, o som
estrangulado na garganta, olhos esbugalhados, espalhafatoso e estupefato,
ridículo, a massa caindo, colherada após colherada, da tigela azul de louça,
lambrecando-o todo, da cabeça aos pés, enquanto ela ria como uma louca. Foram
os sapatos, ela pensa mais uma vez, enquanto vai para o trabalho, o seu
primeiro emprego, dirigindo o primeiro carro comprado com o suor do seu corpo.
Do pesadelo ao recomeço dos sonhos. Foram os sapatos. Cor de ovo. De omelete.
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Bela descrição da vida real,para todos nós,foram os sapatos... Me encontrei em suas letras!Bjo!
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