Por Helena Frenzel
Chamou o elevador. Era só cansaço e o final daquele
turno prometia-lhe o melhor: a cama enorme, macia. Sonhava com o prêmio dos
lençóis cheirando a limpo e ansiava por um sono bom; também pelo bolo que a
faxineira deveria ter batido, pois a mais, para esse e outros mimos, concordara
ele em pagar. Tinha direito!
Era de manhã. Seu turno encerrava-se às oito e ele
ficava sempre mais um pouco, cerca de uma hora, arquitetando o futuro e medindo
os pulsos do coração do capital. Com muito esforço e exatos contatos havia
chegado lá. E dera muito trabalho armar o circo: o colega desistiu não só do
cargo, também do emprego, e mudou-se para outra cidade, pequena, no interior.
Sem ele no páreo e ninguém mais preparado para assumir: bingo! as portas do
futuro se abriam no compasso das do elevador.
Na vida, pra subir, a gente desce, com elevadores nem
sempre isso se dá. Queria o subsolo, mas alguém que viera de baixo e ali já não
estava, apertara o botão de um andar mais alto que o seu. Cento e dez andares,
ao todo, e ele estava quase a meio caminho do topo, no andar da firma. Elevador
pequeno, andar fantasma, não havia viv’alma quando ele o tomou.
No circuito interno, versos de What a Wonderful World fizeram-no lembrar de 1968 quando, aos sete
anos, ouviu-a pela primeira vez. De repente, a impressão de que o prédio
balançara fê-lo voltar ao presente e esquecer de Armstrong. Devia ser o
cansaço, pensou. Um relógio mostrava 09:03 e ele, atraído pela força dos
dígitos, balançou a cabeça especulando a boa fração de vida a gastar ainda na
Itália, às custas de duras escaladas em mais de vinte anos de corporação.
A promoção era merecida, estava certo, em seu
dia-a-dia só havia trabalho, planos, cálculos, transações e Elisa, de quando em
vez. “Ai, Elisa, tivesse você mais ambição ou fosse você mais sórdida...”
Perdido em pensamentos, esquecera-se das luzes que iam
mostrando os progressos do ascensor, estava a um passo do destino desejado
quando sentiu um solavanco, ouviu um estrondo e tudo parou de funcionar. Sem
energia e comunicação, sem rede, sem nada. Tudo tentara para escapar daquela
caixa mas certas coisas só dão certo em filmes de ação. E como contava
carneiros em criança, quando não conseguia dormir, 50 minutos mais ou menos
contou do tempo para fugir de estar no escuro e no silêncio, do pânico de estar
consigo mesmo, tortura sem igual.
Tudo o que sobe, desce, e em poucos segundos a vida se
esvai: “Elisa, querida, tenho tudo, tenho o mundo para dar, tudo pago, sou rico
e pobre de amor; paraíso e putas, não tive, saudade, só de mãe, deixada,
deixou-me o pai, e dói. Ai, Elisa que sonha com Lorca, tivesse eu você agora
aqui... Compro, vendo, não dou nem troco, compro-compro, vendi-vendi, vi vendi
e vendo: mais vale aquele que não se vende do que aquele que se dá. “La Aurora” e “las aguas podridas”, Elisa, ai, Elisa,
jamais saberei, dinheiro, só dinheiro, trabalho, dinheiro, din-din, capital
ganhei, dinheiro, na torre do mundo, dinheiro, nada herdei, dinhei-,
capitalismo e moral, dinhei- calculo se Deus din-din... e perco! Hoje faço quarenta
anos, setembro, quarenta anos de solidão. Estou cansado, estamos todos
perdidos. Não fui imoral.”
“What a wonderful world!” foi seu último suspiro, a
canção de Elisa, a que ela gostava mais.
Tivesse ele já não perdido os sentidos lembraria
também da queda, do ferro, do pó e dos detritos, da torre e dos sonhos
cobrindo-o, desabando, da tão desejada cama e dos limpos lençóis. Desejos de
aniversário se realizam. Ele queria o subsolo e ansiava por um sono bom.
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Bela narrativa de um drama pessoal em meio a uma tragédia que entrou para a história. Texto sensível e singelo, com um quê de poesia.
ResponderExcluirEngraçado que em poucos segundos, ele levantou tudo o que existiu de errado na vida. A pergunta que fica, no entanto, é se ele, caso conseguisse salvação, faria algo para mudar a vida que levava.
ResponderExcluirMuitas pessoas, diante de uma situação calamitosa, são capazes de enxergar os próprios erros e mudar a vida, guinar a direção. Outros, no entanto (e enfrentando a mesma situação crítica), até se "arrependem", mas quando enxergam uma luz ao fim do túnel, tornam à carga, e erram ainda em dobro, e justamente por se acharem imunes a tudo.
A história é trágica, mas suscita alguns pontos que vão além do que se percebe numa primeira leitura. Fantástico, Helena.
Abraços.
Marcio
Acredito que diante da morte iminente, vemos em questão de segundos a vida que se queria viver e tudo aquilo que se viveu, bem ou mal. Fiquei agoniada com a situação do viver-morrer que ele passa enquanto está preso. Ficou realista e a gama de sentimentos tomam conta da gente, e achamos,como bons esperançosos que somos, que ele se salvaria no final. Final contundente e frio, como ele foi em vida. Beijos querida e sem mais, ficou soberbo.
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