Por Maurem Kayna
Era para
ser apenas uma escala em Lisboa, de onde seguiriam para montar a exposição no
Museu de Arte Moderna. Adriana e a equipe desembarcaram muito tarde; e a febre
contraída em sua passagem pela Inglaterra na visita que fizeram à curadoria do
Tate Liverpool contribuiu para a decisão de acomodar-se num hotel da cidade,
aproveitar o que fosse possível do dia seguinte e só então rumar de carro para
Sintra.
A moça da
agência de viagens oferecia opções de conforto e modernidade, mas um calafrio
vindo de além da febre ditou a escolha. Seria o prédio antigo ao lado do Museu
Nacional de Arte Antiga. Ninguém se opôs.
Rumaram do
aeroporto direto para a Rua das Janelas Verdes. Ao avistar a fachada, Adriana
sentiu-se convidada a entrar, a ficar, a deixar ali o mal-estar. Preencheu a
ficha, despediu-se do marchand e da curadora da exposição e foi para o
quarto.
Era uma
habitação pequena, mas agradável. Da sacada poderia apreciar a vista do Tejo
quando amanhecesse. Não desfez as malas, apenas procurou uma roupa para dormir
e algo para vestir no dia seguinte. Não gostava de tomar decisões pela manhã,
menos ainda se fosse sobre a indumentária.
Tomou um
banho reconfortante e fechou a porta do banheiro para que o vapor não tomasse
conta do quarto. Deitou e cobriu-se rapidamente, como se pudesse enganar a
febre e deixá-la fora das cobertas, impedindo-a de colar na pele alvorotada
pelo jato quente do chuveiro. Inútil. Mais sensato seria tomar um antitérmico No
entanto, pensar em se pôr novamente de pé, voltar à névoa do banheiro e
vasculhar o nécessaire a desanimava. Relutou um tempo, oscilando entre o
sono e a hipertermia, mas deixou a razão determinar o passo. Abriu a porta do
banheiro e estancou, forçou os olhos para fazer com que a visão do corredor se
dissolvesse. Sabia que se chegasse à frasqueira e tomasse os comprimidos de que
estava precisando seria fácil regressar ao conforto da cama.
Esfregar a
vista não bastou, Adriana estava mesmo no corredor, e podia ouvir a
movimentação dos outros hóspedes, o barulho nas acomodações alheias. Duvidou
que fosse tamanha a febre a ponto de fazê-la confundir as portas, mas ali
estava, e passos desenhavam sons de sapatos no carpete um pouco gasto. Farejou
o conteúdo da bandeja carregada pelo moço que certamente estaria uniformizado.
Não chegou a vê-lo, mas ouvia, sentia cheiro de condimentos; adivinhou a
aproximação do empregado do hotel empurrando o carrinho com pedidos fumegantes
para os interessados em cear ou aquecer-se com um chá e desejava esconder-se
dos olores e dos ruídos. Ela também gostaria de um chá assim que regressasse à
proteção dos aposentos que lhe cabiam.
O moço
uniformizado fez as entregas, e foi engolido pelo elevador. Não a viu porque o
quarto de Adriana ficava junto da bifurcação do corredor e, como ela
espremeu-se contra a coluna que escondia a entrada do seu apartamento, restara
apenas o temor de que a porta tivesse trancado e não pudesse ser aberta por
fora. Forçou a maçaneta e escutou o som da dobradiça. Respirando aliviada,
esgueirou-se para o outro lado, ainda pensando em algum remédio que aliviasse a
febre.
Vestia
meias grossas e uma dessas camisetas bem surradas, próprias para dormir ou
passar o sábado atirada no sofá sob o cobertor e farelos de pipoca. Os trajes
já seriam motivo bastante para não querer ser encontrada no espaço público do
hotel, mas o mais grave para Adriana seria explicar o engano. Não gostava da
associação comum que muitos dos seus conhecidos faziam entre ser artista e ser
excêntrica. Preferia apresentar-se como uma representante do comum, que o
inusitado visitasse apenas suas tintas.
Depois do
curto alívio de constatar que as maçanetas funcionavam do lado de fora, apoiada
na madeira sólida da abertura, deparou-se com a mesma luz amarelada de antes,
uma claridade indecisa que tinha gosto de madrugada vazia. Aos poucos deixava o
olhar ser invadido pelo discernimento de que à sua direita não estava a
esperada penumbra da alcova com a cama ao fundo. Novamente escutava a privacidade
escapando dos outros cômodos — enquanto uns manejavam talheres, outros tinham a
televisão ligada, talvez outros já dormissem, ou então o quarto estaria vago.
Com a
respiração curta e receosa, desconfiava da própria lucidez, e decidiu
experimentar a maciez do pavimento. Espreitou o silêncio que vinha do elevador,
fazendo grande esforço para conter o impulso de bater em cada porta. Mas que
espécie de ajuda poderia obter? Girou sobre as próprias dúvidas e tentou uma
vez mais. Inspirou ruidosamente, deixando os pulmões lotados de ar. Com toda a
tensão do corpo que isso provocava, agarrou-se à maçaneta com as duas mãos,
suspendendo o momento de forçá-la pelo tempo em que resistiu o adiamento da
expiração.
Queria ao
menos fingir decisão, mas não pôde nada além de manter a porta entreaberta. O
recorte que se apresentou a ela reconfortava a ponto de fazê-la rir, pensando
em como temera não encontrar os móveis quietos e a janela aberta ao Tejo. Agora
confiante, atravessou o umbral e já esquecia a vontade de curar a febre para ir
acalmar-se com a vista do rio. Depois haveria as horas de sono que
merecia.
Tomou o
cuidado de virar a chave e iniciou o percurso vagaroso até seu alvo. Mas cada
passada era como um pingo de solvente sobre o óleo já definido de uma cena. Os
móveis pareciam se desmanchar, cedendo sua forma original a outras.
Derretiam-se os contornos, a cadeira era agora o extintor de incêndio, a cama
subia molemente pela parede até assumir a rigidez metálica da moldura do
elevador, e a porta da sacada fechara-se em uma seqüência de alvenaria
intercalada por portas idênticas. Recuou para observá-las em detalhe. O entalhe
na madeira do marco, o metal da fechadura, a luz débil escapando por baixo de
algumas. Nenhum signo do incomum, apenas o frio querendo apresentar-se.
Pensou em
descer à recepção, mesmo com a vestimenta inadequada, e pedir ajuda. Poderia
contar que havia saído para o corredor por conta de um barulho qualquer, e que
a porta se fechara. Acreditava que se houvesse alguém consigo a mobília e a
privacidade não se atreveriam a desaparecer do seu caminho para confiná-la
novamente na passagem estreita onde desembocavam os outros quartos.
O suor na
palma da mão era a sensação mais acentuada imediatamente antes do movimento,
arriscava-se, mas já não haveria sobressalto. Não conseguira regressar para sua
lucidez exausta, tudo se repetiu com a precisão das vezes anteriores.
Ainda poderia resignar-se e aguardar a alvorada. Durante o dia toda
obviedade se restabeleceria, e, no café da manhã, ela desabafaria com os
companheiros de viagem, contando-lhes o pesadelo insólito.
Enquanto
resolvia sobre aventurar-se ou não pelas escadas, Adriana imaginou como seria a
conversa com a curadora. Será que ela lembrava ainda daquele quadro?
Insistiria. Era uma sucessão infinita de portas conduzindo sempre ao mesmo
cômodo, com a mesma e incansável porta ao fundo, lembra-se, Amanda?
Adriana
não atribuía grande valor àquela pintura, e ela não foi o destaque da exposição
que acabou acontecendo mesmo sem a participação da artista. Talvez se houvesse
um ou outro olhar mais atento à obra fosse possível perceber uma sombra que
mudava de lugar, ou de porta, conforme a incidência da luz. Se um dia
houvesse um estudo acurado do fenômeno, surgiriam discussões quanto à natureza
dessa sombra. O crítico apaixonado pelo estilo da jovem defenderia tratar-se do
vulto de uma mulher amedrontada, certos alunos distraídos não veriam nada além
de sutis variações da textura. Adriana, já acostumada com o vagar entre
batentes e corredores infindáveis, não faria qualquer argumentação.
Este conto faz parte da
Coletânea Pedaços de Possibilidades. Uma resenha minha para esta coletânea pode ser lida aqui.
Maurem, gratas por ter-nos permitido ter este apetitoso ‘pedaço’ de sua escrita também aqui em nosso blog. Volte
sempre!
Helena e Michele
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