Por Maria Mineira
Conheci João ainda menina e nunca mais parei de viajar ao seu
lado pelo interior mineiro, abraçada nas palavras que eu já conhecia, mesmo
antes de aprender a ler. Pois elas mostram o jeito do caipira cangar os bois de
carro, tocar o gado pelas estradas, rios e serras encascalhadas. Palavras que
descrevem a incansável lida dos cavaleiros que atravessavam o sertão,
protegidos do sol por dias nublados ou se molhando nas chuvas de primavera.
A fala de João é calma como o enrolar de um cigarro de palha,
gostosa igual comer pão de queijo com café ou pescar no corguinho ao
entardecer. Ele sempre soube do meu amor, não precisei falar que ao ler seus
livros escalei a Lua, cheguei ao céu para dormir sonhos...
Naquele dia ele voltou a Minas. Estava vivo, encantado! Era nosso primeiro encontro assim de perto.
Pedi que me acompanhasse numa visita à Serra da Canastra. Assentiu e caminhamos
os dois em silêncio pelo Chapadão afora. Tudo estava verde e florido; as sempre-vivas,
as canelas-de-ema e até mesmo os lírios. Na concha das mãos, bebemos água fria
da nascente do Velho Chico. Margeamos o rio até sua primeira queda, a Cachoeira
Casca D'anta.
Ele quem puxou prosa primeiro, excelente companhia. Aos
poucos se apresentou pra mim como um matuto sonhador, me confidenciou que em
Minas sentia-se livre, longe da rotina dura do mundo urbano e fumacento. Eu
bebia suas palavras, onde descrevia a vida em retalhos de céu, pedras de serra,
pingos de sereno e frutas do cerrado amoitadas no capim rasteiro. Assim,
Guimarães Rosa me ensinava que nem sempre se precisa de presença física para se
amar alguém. A certa altura do caminho, me olhou e disse:
— Maria... Alguns sentimentos não se perdem na ausência
quando se possui afinidade de alma. O comum que temos é o nosso jeito de espiar
o mundo aqui do alto da Serra, sentindo o cheiro, a cor e o gosto da vida, nas
águas, fauna e flora desse lugar. Daqui do Paredão, vemos o rio com toda sua
simplicidade na nascente, esse fio d’água correndo pelo Chapadão, saltando toda
manhã em cachoeiras de águas cristalinas. É esse rio que se agiganta para aguar
e encher de verde o outro lado do Brasil.
Segurou minha mão e seguimos do jeito calado que tomava conta
da paisagem. O tamanduá-bandeira balançava o capim, uma onça pintada espreitava
escondida na capoeira. Íamos para onde o sol apontava, o mesmo que na aurora
tinge a terra de cores variadas secando o sereno. Esse sol que toda noite
repousa nos braços da lua terna e apaixonada, que o protege com um manto escuro
pendurando estrelas reluzentes nos portais para iluminar o céu.
— João... Esta Serra abriga muitos sonhos, já alimentou almas
de bugres, jagunços e tropeiros. Com essa beleza singela, acalenta a vida de
almas simples, criando imagens que os seguem pela vida afora, despejando gotas
de saudades nos corações que visitam estas paragens.
As águas cochichavam segredos guardados no fundo da Canastra
quando chegamos ao topo da última Serra. Era chegada a hora do adeus... De mãos
dadas, ouvíamos a natureza sussurrando o som do universo, sentíamos a presença
da Imortalidade nas águas revoltas das cachoeiras, nos campos arados do céu e
no vento cigano de minha terra.
Desejei segurar o tempo, eternizar aquele momento. João tinha
no olhar algo que o ligava ao sol e às estrelas, parecia desacontecido,
virou-se pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, indo para longe de mim,
mesmo assim ainda permaneceria comigo por muito tempo, mesmo depois que o vento
tivesse apagado nossos rastros, na poeira do caminho.
Suavemente, me soltou as mãos... Por um rápido segundo, mirei
e vi seu rosto sereno sendo levado pela aragem... João ia, como se fosse parte
da neblina, rumando cada vez mais alto, ascendendo aos céus, seguindo para as
estrelas. Era noite, havia luar... Meu coração amanhecia.
Nota da autora:
Esse texto é uma homenagem ao meu escritor preferido, João Guimarães Rosa. Ele
me ensinou a valorizar as coisas simples e fazer delas coisas grandes, através
do modo de ver e enxergar o mundo.
* * *
Conheça mais sobre Maria Mineira e seu projeto com escritores mirins em junho, aqui no blog. Obrigada, Maria Mineira, por sua gentil participação. Em junho, não perca, vice?! Salve, Maria! Salve, João!
Helena e Michele.
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Esse é bem um texto da terra, como Maria Mineira tão bem retrata. A homenagem, então, fica mais para dar um clarão iluminado no que já está perfeito. Parabéns, Maria e aplausos aos que tiveram a iniciativa do blog.
ResponderExcluirMuito obrigada a vocês, Helena e Michele pelo convite. Fico envaidecida ao ver meu texto aqui no blog. Obrigada Ana Toledo, pelo comentário de incentivo. Um abraço aqui da Serra da Canastra.
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