Por Michele Calliari Marchese
I
"Quem tem medo da morte é porque nunca
morreu." Gritou na sua mente enquanto corria ao longo da calçada de pedras
irregulares. Quanto mais buscava chegar a algum lugar mais longe ele tinha a
impressão de estar. Seus passos curtos e apertados transformavam a inquietação
que sentia numa vertigem a ponto de sentir a bílis na garganta.
"Eu não quero morrer!" E a angústia
fez suas pernas estremecerem e num ímpeto quis correr mais e mais, mas alguma
coisa deixava-o estático, sem forças, um boneco à mercê da passagem do tempo e
das coisas. Suava tanto que seus olhos estavam embaçados.
Finalmente conseguiu o pleno domínio de suas
pernas e desatou a correr, corria tanto que não percebia nada à sua volta e
quando sem perceber deu um passo em falso, um passo no nada. Não encontrou o
chão e caiu. Caiu vertiginosamente numa queda sem fim, num breu palpável. Não
teve tempo de gritar, pois o sobressalto e o medo atingiram seu peito
violentamente e todo o seu corpo amorteceu, tão forte o choque daquele momento.
Desfalecia assim, instantaneamente durante a queda.
II
Passava das sete e meia quando Cristóvão saiu do
banho ainda atordoado com o sonho que tinha tido duas noites atrás, era um
sonho recorrente, mas não diário e tinha a capacidade de deixá-lo desnorteado
por alguns dias. Geralmente um café bem quentinho colocava as ideias em ordem,
mas dessa vez sentia uma dorzinha na virilha esquerda e ele achava que talvez
fosse a tensão do sonho.
O calor
era intenso e ele resolveu abrir a sua mercearia antes do normal. Com uma
morbidez de morto passou de cesta em cesta para verificar se estavam
abastecidas com o feijão, arroz e a erva mate. Ajeitou-se com dificuldade atrás
do balcão, ferveu uma água para o chimarrão da manhã e olhou para fora.
Não tinha vento, o ar estava parado como se
fosse um enterro, daqueles em que o corpo chega ao cemitério e acontecem de
repente as aglomerações em torno do morto para rezar em prol da alma, tudo
muito apertado, cada um querendo ver pela última vez a brancura de cera
estampada no caixão. Não tinha ninguém nas ruas, sequer o cachorro da Dona
Cícera que vinha todas as manhãs abocanhar as sobras comestíveis da limpeza da
mercearia que Cristóvão varria e depositava do ladinho da calçada já pensando no
viralatas. Mas, olhando bem, não havia os restinhos da limpeza daquela manhã e
o relógio da igreja que ficava em frente à venda não badalou para a missa das
oito.
Ao lado da igreja, pomposamente situada em lugar
de destaque na cidade, a casa do general Eusébio — reformado na Guerra do
Contestado, botica e madeireiro — aparecia a todos os moradores da cidade,
fosse de que lado fosse, a casa dele era a primeira que se via. E era a única
que tinha roseiras em seus jardins porque sua esposa Dona Adelaide esmerava nos
cuidados como se fossem suas filhas e Cristóvão olhava para aquelas roseiras
firmando a vista, apertando os olhos e todas elas, inclusive os brotinhos no
começo do pé pareciam de plástico. Foi lá cheirar e constatou o que a sua
imaginação a algumas horas previra: O mundo parou!
Começou a correr em direção à igreja, ficou
extremamente cansado pelo esforço e com um pesar de fantasma viu que não saíra
do lugar, corria mas não chegava lá. Tirou a camisa grudada no corpo pelo suor
abundante e insuportável quando ouviu nitidamente e a alguns passos de sua
orelha “Nossa seu Cristóvão, o senhor está passando bem?”
Essa frase tirou-o do torpor em que estava e
viu-se na porta da igreja debaixo de um sol escaldante de meio dia cuja hora
marcava exata no grande relógio da torre central. Dona Cícera não estranhou o
silêncio e começou a caminhar sempre olhando por trás do ombro como a esperar
alguma reação absurda. Cristóvão voltou para casa com o rosto e os ombros
queimados pelo sol.
III
O ocorrido andou de boca em boca na cidade, mas
o padre quis mesmo assim convidar Cristóvão para cuidar da pesca na Festa do
Padroeiro, causando certo desconforto entre as beatas, já que era o
acontecimento mais importante da cidade e um “candidato a louco” trabalhando na
pesca, como elas diziam, não ficaria bem para a reputação positiva do evento.
Cristóvão aceitou o convite sem saber dos
pormenores que envolviam o assunto, e lá foi com muita alegria trabalhar na
pesca, vendendo fichas, entregando os prêmios e ajudando as crianças a pescarem
os melhores “peixes”. Na hora do almoço, Cristóvão fechou a banca da pesca e
quando levantou a tábua do alambrado para sair, tudo rescendeu a ontem, ao
passado, ao velho e ao esquecido. O cheiro era insuportável e a sensação de
ânsia eminente fê-lo cair no piso de terra batido do pavilhão da Igreja.
O pior era o cheiro de plástico das rosas.
IV
À falta de vento, às rosas de plástico e à
sensação de aglomeração juntava-se uma triste impressão de ver pessoas ao
longe, sem definição. Ficou com umas saudades de sabe-se lá o que, ou quem, e
começou a chorar. Entremeado pelos gritos de desespero e sofrimento que saiam
de seu peito, precisava levantar daquele chão, mas não conseguia. Era como se
um peso estivesse empurrando seu corpo de encontro à terra e a sensação de
solidão invadiu seu pensamento.
Nem sabia que horas eram, pois o mundo tinha
parado e o sino não badalava.
Quando serenou, sentiu que lhe davam tapas no
rosto e abrindo os olhos viu o botica, a Dona Cícera e o padre. Cristóvão
estava nu, seus pés em carne viva, deitado na relva de um bosque que ele não
reconheceu de imediato e ardendo em febre. Todos deram vivas de alegria e
explicaram que ele saiu correndo do meio da festa e correu feito um louco,
tanto é que fizeram um mutirão para encontrá-lo, pois fazia dois dias que
estava desaparecido.
O Padre, Dona Cícera e o general estavam
visivelmente preocupados, o primeiro porque Cristóvão saiu correndo com todo o
dinheiro da pesca, a segunda porque queria aconselhar Cristóvão a se casar —
com certeza esses rompantes eram oriundos da falta de mulher — e piscou-lhe o
olho pintado de lápis. E o terceiro porque queria testar em Cristóvão uma nova
poção mágica que garantia o pronto restabelecimento das faculdades. As vozes
começaram a se misturar em sua cabeça, pedindo que ele comprasse o dito
ungüento, os pequeninos assustados com os prêmios da pesca, dizendo sim no
altar da igreja enfeitada, a ideia de comprar o dito ungüento, o sim de novo,
as juras, o padre contando quantas notas e moedas tinham-se perdido sem poder
encontrar solução para o caso, e esse burburinho de vozes todas juntas,
ininteligíveis, uma pressão por respostas imediatas que Cristóvão sentiu aquele
cheiro tão seu conhecido; aquela coisa morna, quente e sem vida começou a passar
pelas árvores à sua volta como num anel de morte e tudo ficou vazio,
silencioso, sem vento e uma vontade imensa e irrefreável de correr formigou
suas pernas.
Deixou todos ali, plantados à sua volta, levou
consigo os olhares perplexos dos três amigos e correu, correu até que seu
fôlego permitiu e corria tanto que não percebia nada à sua volta e quando sem
perceber deu um passo em falso, um passo no nada. Não encontrou o chão e caiu.
Caiu vertiginosamente numa queda razoavelmente curta. Não teve tempo de gritar,
pois era o que ele queria. Desfalecia assim, instantaneamente durante a queda.
V
"Que dor de cabeça." Abriu os olhos,
mas não pode conter o grito de dor por tentar levantar os braços. Nem podia
fazer algum movimento com eles, parecia que sua pele iria arrebentar e sua
cabeça também. Encontrou o general Eusébio aplicando ungüentos em seus ombros e
Dona Cícera molhando um paninho e colocando em sua testa para aplacar a febre
das queimaduras de sol. Lá fora o dia seguia lindo e as pessoas nos seus afazeres
com os barulhos do dia a dia.
E eles perguntaram por que Cristóvão havia
ficado tanto tempo debaixo de um sol escaldante do meio dia, sem camisas
olhando para a Igreja, e Cristóvão assustou-se com tal questionamento porque
isso havia acontecido anteontem e pediu sobre a Festa do Padroeiro, e eles
responderam quase juntos como numa aliança de morte: “É amanhã”.
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Quer saber por que gosto desse causo, Comadre? Esse trecho fala por si só: "As vozes começaram a se misturar em sua cabeça, pedindo que ele comprasse o dito ungüento, os pequeninos assustados com os prêmios da pesca, dizendo sim no altar da igreja enfeitada, a ideia de comprar o dito ungüento, o sim de novo, as juras, o padre contando quantas notas e moedas tinham-se perdido sem poder encontrar solução para o caso, e esse burburinho de vozes todas juntas, ininteligíveis, uma pressão por respostas imediatas que Cristóvão sentiu aquele cheiro tão seu conhecido; aquela coisa morna, quente e sem vida começou a passar pelas árvores à sua volta como num anel de morte e tudo ficou vazio, silencioso, sem vento e uma vontade imensa e irrefreável de correr formigou suas pernas." e eu me calo. Retorno tão somente pra dizer: 'amei!'. Beijos, Mi.
ResponderExcluirComadre, somos suspeitas em falar uma da outra, mas obrigada pelo comentário! É sempre uma honra quando comenta algo feito por mim! beijos
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