Por Helena Frenzel
Cento e sessenta
quilômetros, cem páginas de um manual. O letreiro acima da porta avisava:
aproxima-se o destino e o local. Estava preparado. “O cliente tem sempre razão”. Alberto torceu o pescoço pensando
nisso e guardou os papéis; a esquerda arrumou a gravata, a direita buscou o
paletó. Já vestido, sentiu o peito vibrando e pensou em taquicardia, mas não
passou do celular fino anunciando nova mensagem. “Desculpe a rudeza do meio”, dizia o email, “buscamos outras formas de contato, sem efeito. A Senhora Matoso
Pedreiro faleceu esta manhã.” seguidos de uns “sinceros pêsames, favor entrar em contato de imediato para acertos
finais”. Pela forma do texto nem precisava ter assinado Ester Loureiro para que ele soubesse que
se tratava de uma mulher a serviço da agência funerária. Eram profissionais,
como ele. A morte era o negócio e nessas horas eles bem deveriam saber o que
fazer. Por isso ele não entendeu. “Que
acertos finais? Tudo já não tinha sido pago?”, perguntou-se aborrecido
preparando-se para o desembarque. Os trens eram rápidos nas estações não-terminais,
teve que apressar-se.
* * *
“Nunca! Só sobre o meu cadáver! Nem dinheiro
nem ações!”. Alberto lembrou-se da discussão que tivera com a mãe já no
conforto do táxi, apartado do frio e serpenteando nas ruas vazias de gente a
caminho do hotel. Pegou o celular e buscou o site. Certa vez, passando por uma
crise, recebera via email o convite de uma amiga da família, Gilda, para
visitar um blog. Poemas e narrativas não preenchiam sua lista de preferências,
mas o que ele ali encontrou tanto o incomodou que sem se dar conta tornou-se leitor
o mais assíduo. A profundeza na simplicidade dos escritos daquela mulher era para ele
um enigma que tentou primeiro entender e, depois, ignorar; mas sempre nos
momentos mais críticos, sentia-se compelido a voltar e ler sem pausas, e o mais
estranho era o alívio que sentia no final, senão pelo escrito, pelo prazer
rasteiro de ter cedido à tentação. Certa feita,
sentiu um forte desejo de tomar a escritora nos braços e dar-lhe um sincero
beijo de tanto que o texto o comoveu, mas nunca teve coragem de manifestá-lo. A
escritora sabia que era lida por muitos, ele pensava, e a ele apetecia saber-se
um ponto só nas estatísticas, anonimato total.
* * *
Num misto de
impaciência e cansaço não sentiu segurança ao dizer que azul era a cor
preferida da mãe, mas achou que tons escuros e opacos bem combinavam com a
ocasião. Ester Loureiro tinha uma voz firme porém macia, num tom ameno feminino
que poderia interessá-lo, mas Alberto desistiu de compor a cena ao lembrar-se
que sua vida em nada casava com o rol de exigências sentimentais, e lhe disse:
“Façamos assim, obrigado.” Não
maldizia as tantas viagens, gostava muito até. Era uma forma de estar em vários
lugares sem pertencer a lugar nenhum. “Ela
seria cremada mesmo e no fim: tudo cinza”, ele pensou e “escuro” respondeu desligando, pois a conversa
havia terminado bem antes dispensando a praxe social. Resignado pagou a
corrida, pegou a bagagem e entrou no hotel.
* * *
“Você não conhece sua mãe.” — disse-lhe Gilda
ao saber da discussão que tiveram — “Não
faz idéia de quem ela é”.
“Fala das ações?” — perguntou Alberto.
“Sim, das ações” — ela disse, friamente.
* * *
Lembrou-se da
escritora e das tantas vezes que ela, com suas palavras universais havia
conseguido distrair-lhe a dor. Quando a encontrou, na internet, ficou com
nítida sensação de papéis invertidos: ela, escritora; ele, leitor, porém: “Eu não leio seus escritos; é ela quem me lê
antecipando o que eu digo e sonho em poder dizer, exatamente”.
* * *
“Vendidas.” — Alberto recebeu o anúncio e
não soube o que dizer a Gilda. A mãe tinha aquele jeito sorumbático, pouco compartia
de suas decisões. Naturalmente ele não a deixaria desamparada, se bem que ela
lhe garantira ter mais que o suficiente para viver. Concluiu o curso, abriu a
firma. “Certas idéias persegue-se ou elas
para sempre perseguirão”. A mãe não o questionou por isso. Simplesmente
disse: “Você é capaz”. Com dezoito
anos ele havia deixado a casa dos pais para estudar em outro país. A mãe, viúva
há um bom tempo, era ainda muito jovem quando ele partiu e não pouco alardeava
amar o provinciano e a solidão, que “não é
o mesmo que estar só e nada tem de melancólico, é escolha consciente pessoal”,
ela dizia. O pai morrera deixando Alberto ainda bebê e em suas lembranças não
havia nada da vida com ele, apenas um rosto pintado de fotos e um perfil colado
de lembranças alheias.
* * *
Há vários anos Alberto
dividia a vida entre clientes, acionistas e reuniões, sobrava tempo apenas no
Natal e sonhava com a aposentadoria, quando a vida, de fato, prometia começar.
Soube da doença da mãe só quando esta já estava no hospital. Certas moléstias
nos pegam desprevenidos, no caso dela nem a genética poderia antecipar. E em
menos de um mês estava tudo concluído. Os serviços funerários ela própria havia
contratado muito antes, em tempos de lucidez. Sessenta e um anos completaria num
próximo maio, morreu em abril.
* * *
Em penumbras e
quartos de hotéis Alberto chorou muitas vezes, chorou como um menino que criou
corpo e não cresceu, incomodado. De tanto choro, nunca soube a razão. Depois
das cinzas e do espólio, Alberto lamentou nunca ter se sentido à vontade para falar
de sentimentos com a mãe. Lembrou que quando criança ela perguntava vez em
quando: “Você me ama?”, ao que ele
sempre negava ou mantinha o silêncio com prazer só para contrariá-la, coisas
que as crianças sabem tão bem fazer. Um dia as perguntas cessaram e calaram-se
todas as declarações. Ele nunca quis que ela vendesse as ações para ajudá-lo em
seus negócios, a essa idéia ele opusera-se feroz. Porém, diante do feito,
aceitou de bom grado. Fazer o quê? Conforto material ela sempre teve; como
prometera: ele nunca a desamparou.
* * *
O incômodo só crescia
quando ele recorria ao site buscando uma palavra de auxílio, um sentido qualquer
e nada; há meses, nenhuma publicação. Na falta de novos escritos burilou
antigos, mas nada conseguia lhe acalmar. Alí ficara um hiato, uma pausa nas
postagens sem qualquer explicação e esse não saber o inquietava e fazia-o
checar neuroticamente atualizações. Pela primeira vez sentiu-se órfão, sozinho.
Teve certeza. Mas, desta vez, não chorou. “Quatsch!”, a disciplina falou mais
alto e a ordem foi trabalhar. A noite foi-se com o sono evadido levando o temor
de perder o trem, que sairia a poucas horas, e de perder-se na conta dos cordeiros:
centenas de clientes, quilômetros de trilhos, milhões em ações, cem manuais...
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Helena, que trabalho primoroso vocês têm construído nesse blog. Feliz em fazer parte do seu mundo. Um abraço. Isabel.
ResponderExcluirOi, Helena. Um dia vou ter tempo e cuca fresca para ler mais dos seus textos. Seu carinho de sempre está comigo. Beijos.
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