Por Michele Calliari Marchese
Benvindo foi visto
pela última vez comendo um sanduíche no balcão da rodoviária de Pato Branco.
Tinha o filho ao lado, comendo também. Estavam rindo e demonstravam uma
felicidade incomum.
Uma vida inteira
depois do sumiço do Benvindo, a pessoa que o viu na rodoviária naquele dia,
lembrou exatamente de suas últimas palavras: “Começaremos vida nova”. E essa
pessoa, que era o imediato do delegado da Campina da Cascavel estranhou não ter
visto a esposa do homem, mas pouco lhe interessava, e com um aceno de adeus
entrou no ônibus que o traria de volta para casa.
No dia que o
Benvindo foi embora, disse a todos que iria comprar cigarros e levaria o filho
junto. Hoje, a mãe de Benvindo, com um retrato gasto em suas mãos trêmulas,
olha para aquela criança da foto que segurava uma vela durante a primeira
comunhão. Todas as crianças fizeram pose para o fotógrafo que registrou aquele
momento único e era essa a principal lembrança que tinha do filho. Os cabelos
molhados de brilhantina, virados para o lado esquerdo, uma camisa branca e um
calçãozinho preto, meias brancas a lhe cobrirem as pernas até os joelhos e os
sapatos pretos comprados especialmente para a ocasião. Um olhar de perdido
surgia sempre que a mãe perguntava para o filho da foto: “Por quê?” Nunca teve
respostas.
No dia que o
Benvindo saiu para comprar cigarros, Mary Anne, a esposa do Benvindo, lhe fez
um bico com os lábios em sinal do beijo. Agora, era uma inconformada. Fora
abandonada. O sogro a trouxe da capital para casar com seu filho, e
conheceram-se somente no dia do casamento. Filha de uma professora tinha esse
nome porque a mãe era dada aos romances americanos que lia com avidez. Ela por
sua vez, tinha os mesmos gostos, tanto que o filho deveria chamar Michael,
pronunciando “Maicon”, mas o marido quando foi registrar o filho o chamou de
Benvindo Júnior. Ficou de mal com ele por três meses. Nem um dia a mais, nem a
menos. No fim das contas depois de tanto tempo, pensou que nunca sentiu a falta
do marido, mas sim do filho. Resolveu morar com os sogros e viver às expensas
deles. Agarrava-se à ideia de que uma hora ou outra o marido apareceria e
esperaria o tempo que fosse preciso — ou para sempre — se assim a vida quisesse,
e como faz uma boa esposa.
Quando Benvindo
saíra naquele dia para comprar cigarros, o filho, Benvindo Júnior lhe agarrara
as mãos como a prever o triste desfecho que teria se acaso ficasse. Vendo
aquele amor infantil e dependente, levou-o junto até a vendinha da esquina. Não
tinha intenção — naquele dia — de abandonar tudo e ir-se embora para sempre.
Aguentaria mais um pouco os inconformismos da mãe, o jugo exagerado do pai e o
pedantismo insuportável da esposa. Era grato ao Benvindo Júnior que lhe dava os
raros momentos de felicidade e por ele aguentava a prisão em que vivia sempre
calado, a obedecer ordens neuróticas e nervosas. Tinha que aceitar tudo o que o
pai lhe exigia.
Pediu o cigarro no
balcão e o dono lhe apresentou uma conta de duas folhas que a esposa tinha
feito fiado. Era-lhe quase impossível pagar todas aquelas coisas fúteis e sem
serventia. De comida não tinha nada marcado, eram coisas de mulher, coisas que
ela nunca usaria, como aquele vestido de lantejoulas azuis, que sozinho custava
um mês de trabalho do Benvindo. Se chegasse a casa pedindo satisfações, o pai
lhe mandaria que calasse e que fizesse as vontades da esposa, e que trabalhasse
mais se necessário. Não, ele não queria ouvir mais nada.
Pegou o cigarro,
guardou no bolso e mandou que cobrassem a conta de seu velho pai. Apertou a mão
do filho. Trouxe-o para si e beijou-o repetidamente nas faces enquanto chorava
amargurado pelas tantas vezes que em silêncio, baixara a cabeça.
Naquele dia que o
Benvindo saiu para comprar cigarros, foi o filho que lhe disse: “Vamos embora
daqui pai.” E o Benvindo sabia que se ficasse, Benvindo Júnior teria o mesmo
destino amargurado que o seu.
Foi o dono da
vendinha da esquina que contou à família e ao delegado que viu num relance pai
e filho entrando na carona de um caminhão carregado de coisas que ele não sabia
o que era. Tampouco deu atenção ao fato, pois poderia ser que estavam dando uma
volta para satisfazer algum pedido do pequeno. Anos se passaram e ele foi capaz
de lembrar que Benvindo chorava quando entrou no veículo e que não olhou para
lado algum, como se fosse uma despedida.
E quem o viu pela
última vez, o viu diferente. O imediato do delegado sequer reconheceu Benvindo
na sua aura de felicidade naquele balcão da rodoviária de Pato Branco. Enquanto
o ônibus dava marcha ré, pôde ver através da janelinha embaçada, pai e filho
abraçarem-se sem medo do futuro, apenas confiando no amor e foi por isso que
não pediu nada, nem para onde iam e tampouco se levavam malas.
Naquele dia que
Benvindo e o filho saíram para comprar cigarros, eles sabiam no fundo de suas
almas que ninguém jamais entenderia por que partiram e tampouco por que nunca
mais voltaram.
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Às vezes dá essa vontade de sair pra comprar cigarros. Aí eu me lembro de que não fumo.
ResponderExcluirFeliz natal, Helena.
Bom 2014!
Pois é, faço minhas as palavras da Michele: tanto faz ser fumante ou não-fumante, o importante é deixar-se inspirar e topar a participação. Vem comprar cigarros com a gente também? Ainda dá tempo. Abração!
ExcluirNão há necessidade de fumar ao sair para comprar cigarros!! Beijos Ana, obrigada pelo seu comentários, e Feliz Natal para você e sua família!!! Beijos
ResponderExcluirNossa, muito bom.
ResponderExcluirBom, pelo menos levou o filho. até dá perdoar um pouco.
Pior que hái casos asim. escutei no ônibus uma mulher falar de um desconhecido. usando outra desculpa pra dar no pé.
Bom dia Rodrigo! A ocasião faz o ladrão, não é mesmo? Ele viu em meio a todas as perturbações que aquele momento era o momento decisivo em sua vida. Muito obrigada pelo comentário! Abraços e Feliz Natal!
Excluirbrigado. Feliz natal pra ti tbm, Michele.
ExcluirAbraços.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente seu conto, Michele, como todos os outros, boas histórias com bons argumentos que envolvem o leitor. Bj
ResponderExcluirObrigada Celedian! Beijos e Feliz Natal!!!
ExcluirReli seu conto e hoje descobri que há muita doçura nessa fuga... o comprar cigarros é mesmo um álibi e tanto. Excelente!
ResponderExcluirVerdade Vany! Foi apenas um álibi. Beijos e obrigada pelo seu comentário
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