Por Vany Grizante
O maço acabou. O dedo
(e todo o resto do corpo) tremia, vontade voraz, secura na garganta. Se não
achasse a chave da porta, sairia pela janela, não estivesse no décimo andar.
Ou, pensando melhor, se caísse poderia ser salvo pela marquise; talvez valesse
a pena arriscar.
Mas achou a chave. Deu
duas voltas trêmulas e chamou o elevador, que estava particularmente lento
naquele dia. Era um elevador antigo, desses burros, que ia para onde o
chamavam, independente da ordem de andares. O menino do décimo oitavo fez de
novo a brincadeira, adorava apertar todos os botões, os pais achavam uma
gracinha. No décimo quinto, uma demora abusiva; ia reclamar ao síndico. Aquela
família de cinco filhos, um cachorro e um gato sempre descia com uma enormidade
de tralhas e o elevador ficava parado horas no andar. Assim não podia ser.
Finalmente no térreo,
o porteiro puxa conversa.
— E aí seu Toledo,
melhorou do dedo?
E ria, balançando a
gorda pança. Era sempre a mesma brincadeira. Fazia meses que ele havia parado
de sorrir quando o porteiro vinha com graça, mas não adiantava. Era um tolo
bonachão que não entendia a linguagem de sinais. Mesmo quando, um dia, mais
enraivecido que o normal, fez ao espirituoso homem um sinal com os dedos muito
claro e universalmente conhecido, ele riu ainda mais, a pança tremendo como
gelatina em mesa de pés bambos.
Finalmente na rua,
relaxou um pouco. Pôs a mão no bolso para pegar um cigarro mas lembrou-se de
que estava saindo exatamente para comprá-los. O relaxamento virou tensão,
tossiu freneticamente por conta de uma fumaça invisível e atravessou a avenida
fora da faixa de pedestres, que estava muito longe.
O bar do português
estava lotado. Bando de vagabundos, meio da semana, cadê o trabalho? A fila no
caixa o exasperava. Ao pagar, percebeu que havia esquecido a carteira. O
português o olhou desconfiado: sem fiado. Quase saiu correndo com o maço que
chegou a resvalar em sua mão ávida. Respirou fundo, tossiu de novo e saiu
caminhando muito ligeiro sobre a calçada áspera, parando na beira da faixa de
pedestres para esperar o semáforo — e respirar, que o fôlego andava curto.
Nova excursão lenta e
angustiante ao apartamento. Abriu a porta, agarrou a carteira e saiu. A descida
de elevador foi menos penosa, mas a demora para atravessar a avenida, hora do
rush, comeu-lhe parte do fígado. Ao menos desta vez o porteiro nada havia dito.
Quase arrancou da mão
do português o maço de cigarros. Ah, a sensação boa de segurar o pacote, abrir
o fitilho, puxar o cilindro abençoado... Na porta do bar, acendeu-o. Fechou os
olhos, tragando e caminhando lentamente, flutuando pela calçada cheia de
pedestres, flanando pela avenida cheia de carros. Hora do rush.
O moço acabou. Causa
mortis: politraumatismo com lesão cerebral. Tão jovem! O enfisema estava apenas
sendo gestado e o AVC ainda ia levar uns anos...
Nota: Assumimos que este texto se trata de ficção, ou seja: não se refere a pessoas e fatos do mundo real nem emite sobre eles juízo ou opinião. Ele nos foi enviado para publicação pelo(a) próprio(a) autor(a), sendo aqui reproduzido conforme o original recebido. É de autoria e inteira responsabilidade do(a) autor(a), que detém sobre o mesmo todos os direitos autorais. Este texto não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores deste site.
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Vany!!! Adorei seu texto! O Toledo Ficou tão distraído com o vício que morreu de outra forma. Acontece. Beijos querida e obrigada por participar!
ResponderExcluirExcelente o conto, Vany, narrativa bem conduzida, fluida e muito agradável. Adorei! Beijo
ResponderExcluirFaço minhas as palavras de Michele e Celêdian. Uma ótima contribuição para esse desafio literário que foi surgindo sem ninguém planejar, surgiu e foi crescendo, gerando textos muito bons e prazerosos para ambos os lados: para quem escreve e para quem gosta de ler. Amei, Vany! Viva o fumo literário!
ResponderExcluirtexto muito bom.
ResponderExcluirdá pra entender o que se passa no personagem.
muito bom.
Bom conto, Vany. O comentário da Michele (estampado aí acima) resume perfeitamente o conto: distraído por um vício o personagem morre de modo imprevisto e você consegue passar isso para o leitor sem sustos, sutilmente. Parabéns!
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