Por Helena
Frenzel
Ele saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou.
Pensando nisto entrei meio cabisbaixo no bar do Aluísio, um velho galego.
Sentei-me num banco alto junto ao gasto balcão de madeira e já ia fazer um
pedido quando me interrompeu: “Estás meio triste, Abelardo? Brigaste com a
namorada, eu sei.” “E como é que você sabe?”, me vi espantado. “Tu blogas e
eu tenho facebook, aliás estou na tua lista de amigos, esqueceste?” “Ah, é
tanta gente,” retruquei, “não me lembrava de você ali, desculpe.” “Pois é, hoje
em dia a net virou confessionário,
igual mesa de bar mas com muito mais garçons e clientes para dar pitaco, não é
mesmo?”, riu com gosto. “Verdade, dá uma vodka.” “Vodka, logo de manhã?” “Isso,
para aquecer o dia! E esse Sol, que não sai?” O chuvisco lá fora não havia
parado e era pouco o movimento às onze da manhã. “Teu dia começa tarde”, disse
secamente e depositou um copo a poucos dedos da minha mão. “Esperto foi meu
pai, Seu Aluísio, que saiu um dia para comprar cigarros e não voltou mais, nem
sombra nem pó, só Deus sabe o que aconteceu.” “Olha, rapaz”, Aluísio apertou um
olho e a outra sobrancelha se ergueu: “teu pai foi meu amigo, tu sabes. Não me
meto na vida dos outros, mas esse segredo eu não carrego mais. Vi que tu sempre
escreves no teu blogue falando dele, e muito mal aliás, mas tu não sabes o que aconteceu de fato.” Nem tive tempo de ficar zangado, fui terminando de dizer que
só eu e mamãe sabíamos o que tínhamos passado e o velho veio com aquela de que
toda história tem sempre mais de uma versão. “Pois é”, eu disse, “só sei que
ele nunca me procurou. Mulher a gente até abandona, mas filho... ” “Escuta,
conheci teu pai quando ele ainda estava casado com a filha de Tonha, vivendo na
casa da sogra e construindo uma casinha para poder sair de lá. Lembro ele
contando que as poucas economias que fazia, volta e meia sumiam dos guardados. Os cunhados
metiam a mão na carteira dele na maior cara-de-pau, sem falar no material de
construção que os vizinhos roubavam. Só sei que com muito sacrifício e trabalho
nas horas vagas ele e a mulher construíram a casinha e logo depois de pronta, ela apareceu grávida e pouco depois nasceu tua irmã. Quase ninguém sabe do inferno que ele vivia
em casa, nem uma camisa ela se dignava a passar; se quisesse cueca limpa, que
fosse lavar ele mesmo. É justo, todo mundo sabe, mas casamento é partilha, meu
filho: um dá o trigo, o outro faz o pão e os dois comem juntos, e ela nem a
comida fazia para o teu pai. Um belo dia começaram a levantar suspeitas da
paternidade da menina, ainda mais que não sei quem, no passado, havia
profetizado que filhos o teu pai não ia ter. Tem gente que crê nisso, ele
não cria, mas quando menos esperava, veio a separação. ‘Se eu registrei a
menina, ela é minha filha’, ele me disse, e com isso a paternidade ficou fora
de questão, pelo menos enquanto ele pagou a pensão direitinho. Saiu de casa com
a roupa do corpo e o uniforme da firma ainda por lavar, sob ameaça de ter o
pescoço cortado se voltasse a dormir em casa. Não voltou, por amor à tua irmã,
que a mulher não deixou que ele visitasse nunca mais. Alugou um quarto num
cortiço. Não demorou muito, veio a crise e ele perdeu o emprego, e a
louca da filha de Tonha jogando processo nele por causa da pensão. Teve sorte
de arrumar logo outro emprego e aí conheceu tua mãe. Com pouco tempo ela engravidou, e teu pai se desdobrando para sustentar as duas
famílias e a situação, lá se amigaram. Com muito sacrifício eles construíram outra casinha e
quando já estava tudo nos eixos e tu, crescidinho, começaram os problemas com a
tua mãe. Um homem que passa a própria roupa não se deve jogar fora, meu
filho, mas se nem Deus sabe o que querem certas mulheres, dirá um homem só! Ele saía cedo e voltava muito
tarde e nunca encontrava nada para requentar e comer, dinheiro para as despesas
ele sempre dava, como a pensão da menina que ele nunca deixou faltar.
Um belo sábado ele chegou em casa, de tarde, e nem boa tarde recebeu, perguntou por ti e tua mãe disse que dormirias com teus avós. Ela estava terminando a maquiagem, vermelho caprichado carmim e sem tirar os olhos do espelho disse que os cigarros estavam quase no fim. Ele disse que iria comprá-los e ela, sarcástica, falou (Aluísio com as mãos nas ancas imitando voz de mulher): ‘Mas como você é manso…Pois vá mesmo e escolha um boteco bem longe, e de preferência lá na Freguesia do Ó, que é para voltar bem tarde, mas se tiver o azar de se aviar mais cedo não volte
antes das oito, será melhor pra todos nós’. Ele me disse que saiu andando sem rumo e
que voltou para casa umas vinte para as seis, um par de sapatos na porta e uns
gemidos no quarto fizeram-no dar meia-volta, tomar sentido e jamás volver. Foi quando ele chegou aqui, cabisbaixo como tu, e me pediu um maço de cigarros. ‘Para você?’,
perguntei estranhando, pois sabia que ele não costumava fumar. ‘Não sei ainda,
preciso pensar muito’, ele respondeu. Sentou neste mesmo banco que tu estás
sentado e contou-me essa história que acabei de te contar, num fluxo.”
Minha boca estava seca porque meus lábios não queriam
se fechar. Que eu não fosse filho do meu pai, nisso nunca havia pensado, muito
menos numa possibilidade de pulada de cerca de minha mãe que, pensando bem,
ainda dava um bom caldo e nossa fonte de renda depois do sumiço de papai virou
tabu. Quedei estupefato e Aluísio me pediu que não postasse isso no meu blogue. “Certas coisas, ninguém precisa ficar sabendo, não é rapaz?”, ele me
aconselhou. Antes de pensar nos motivos alheios, pensei no meu próprio
relacionamento e nos filhos que não chegamos a ter. Não sou fumante, nem filho
de dois, se bem que agora... vá saber! Ainda meio zonzo, agradeci pela vodka,
bebi de um trago, paguei e saí. Sempre me calo antes de digerir uma história. E
aquela história merecia muita reflexão. Saí dali evitando qualquer julgamento,
mas ao pensar em Marcela e em seu jeito peculiar de me amar, não pude
resistir à idéia de aderir ao fumo. Talvez os cigarros, para o meu problema,
fossem a melhor solução.
"(…) amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos"
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
(Capítulo XVII, Do trapézio e outras coisas).
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Helena, esse conto me mostrou a cara do dia a dia. Quantas coisas a se pensar e quantas histórias temos ainda para ouvir. O julgamento, nesse caso, foi importantíssimo . E como diz seu personagem: Toda história tem dois lados! Parabéns e fiquei cá, imaginando se ele vai sumir ao comprar cigarros ou voltar para o amor peculiar de Marcela. Beijos querida
ResponderExcluirObrigada, comadre! Este conto não teria saído da gaveta não fosse a inspiração que o seu conto me deu, um conto escrito lindamente, o que para mim não é surpresa em se tratando dos seus escritos aliás. Não havia comentado ainda por falta de oportunidade, por estar voltada para a organização dos outros textos que estão chegando e que farão parte da rodada. Olhe, se tivéssemos planejado esse desafio o resultado não estaria sendo tão bom. Coisa boa é desafio literário, põe a gente para escrever - e como! Beijão, comadre!
ExcluirNossa! Ficou incrível! Prendeu-me do início ao fim. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Maria, vindo de uma escritora com o seu talento para boas histórias, só posso tomar como elogio! (risos) Estamos aguardando o seu para que a rodada fique mais bonita, o importante é soltar a imaginação! Grande beijo para você!
Excluiré, há dois lados na historia. qual será a verdadeira?
ResponderExcluirmas por um lado, entendo a situação do homem.
Grande abraço, querida.
Acho que a verdade é uma colcha de retalhos de todas as versões de uma mesma história, Rodrigo. Obrigada pela leitura e pelo comentário, sim, se a ficção não puder ser verificada numa realidade, seja ela qual for, dificilmente se consegue convencer o leitor, não é verdade? Um grande abraço.
ExcluirOtima construção Helena que prende o leitor e ativa a curiosidade.
ResponderExcluirUma vida de misterios e castelos que se dissolvem numa mesa de bar, bem real amiga.Parabens pela trama.
Desejo a voce um Feliz Natal pleno de paz e luz e que possamos estar em sintonia em 2014.
Um abração carinhoso.
Obrigada, Toninho Bira, seja sempre bem-vindo ao nosso canto para contos, causos e coisas do tipo!
ExcluirGenial, Helena. Este tom machadiano, do mistério que se deixa a cargo do leitor decidir sobre algo ter acontecido ou não, sugerido pela mesma dúvida do personagem, me encanta. A alusão à Marcela, de Brás Cubas ,na citação foi dez. Parabéns, adorei! bj
ResponderExcluirTeu jeito de contar faz toda a diferença! Amei!
ResponderExcluirAbelardo contou a história, Vany, eu só escrevi he he he...
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