(Ou das relações entre inspiração e cigarros)
Por Ailton Augusto
O hábito de fumar era, nele, antes pose que vício. O de beber, também.
Tanto assim que ele não comprometia o orçamento para comprar destilados ou
cigarros. Aliás, cada cigarro e cada drinque era consumido com parcimônia e
cálculo excessivos: quase sempre o ato de fumar se restringia às reuniões
sociais a que era convidado como promessa da nova geração de escritores.
Apesar de enquadrado como escritor de uma possível nova geração havia aí
dois erros de avaliação dos "amigos" — na verdade, pessoas que, como
ele, buscavam apenas um pequeno reconhecimento que ajudasse a despistar as agruras
do viver. O primeiro erro dizia respeito ao caráter de sua produção: antes de
ser nova, ela guardava, isso sim, profunda relação com coisas já ditas e se o
nome dele não sugerisse nada ao leitor menos atento à "nova cena
literária", suas frases poderiam quase ser acusadas de plágio por conta da
emulação que fazia do estilo de outros autores mais famosos. Além disso, já
havia tempo que ele se dedicava à escrita.
O segundo erro, diga-se de passagem, também se relacionava com o tempo.
Não o tempo que se presume no estilo de um autor (que pode, como era o caso,
remontar ao final do século XIX ou à primeira metade do século XX), mas sim ao
tempo mesmo, esse que malvadamente tinge de branco os cabelos e faz soar
engraçada a inclusão de um jovem senhor entre os valores da nova geração.
No momento em que este conto começa, encontra-se esse escritor às voltas
com um poema de encomenda que precisava terminar para um recital organizado
para recepção aos calouros do curso de Letras da universidade local. Ele precisava
caprichar porque o evento seria realizado no auditório da faculdade com toda a
pompa necessária. Necessária, note-se, não às boas-vindas, mas aos que dela
tomariam parte, tirariam fotos, encheriam as redes sociais com demonstrações de
pertencimento à "haute culture" e de possuir boas amizades.
O problema, porém, passava longe desse jogo de aparências. Era um
problema de jogo sim, mas de palavras. Ele não conseguia acertar uma rima rica
e se doía todo. Riscava e rabiscava seu rascunho, abria e fechava seus muitos
dicionários. Sem sucesso.
Nesse momento, produziu-se uma ruptura em sua vida tão calculada: pela
primeira vez ele fumava fora das situações previstas, sem piteira, sem pose,
sem testemunhas deste ato tantas vezes destituído de sentido. Agora não: ele
fumava sofregamente, à espera de que suas dificuldades de escrita se
desvanecessem na fumaça.
Ele, agora convertido na lagarta de Alice, tragou um, dois, três e
muitos outros cigarros até que acabaram todos. Não tinha outro maço de cigarros
em casa e não tinha encontrado ainda a palavra salvadora, aquela que seria a
chave de ouro de um soneto perfeito, cujo rascunho dava prova de quantas vezes
fora buscado.
Decidiu, então, sair para comprar cigarros e arejar a cabeça. Por azar
era dia de feriado e teve de andar mais de dez quarteirões até encontrar uma
padaria aberta onde enfim pudesse comprá-los. Enfiou o maço no bolso, junto de
uma caneta e longe de um isqueiro, tão comum no bolso dos fumantes
verdadeiramente inveterados. Em seguida, tomou o caminho de volta para casa. Ia
pelo terceiro quarteirão quando veio, nítida, a palavra que faltava ao seu
poema. Desesperou-se: estava longe de casa, sem papel, sem salvação para seu
poema. Tinha medo de ser traído pela memória e mais medo sentiu quando os primeiros
pingos grossos de uma chuva inesperada chocaram-se contra o chão.
Foi o tempo de esconder-se sob uma marquise e a um temporal desfeito
arriar. Teve, aí, uma atitude digna de seu desespero e condizente com a relação
frouxa que mantinha com o cigarro: abriu o maço e jogou todo seu conteúdo fora.
Vinte pequenos cilindros brancos se sujaram ao tocar o asfalto. Vinte pequenos
cilindros brancos desceram indefesos junto à enxurrada até encontrar a boca de
lobo mais próxima, cilindros brancos como pedaços de um navio naufragado. No
papel do maço vazio ele escreveu com letra trôpega, emocionada e convulsa a
palavra tão ansiada. E esquecendo-se de tudo o mais, enfiou-se embaixo da chuva
para voltar rápido para casa.
Chegando, pôde enfim terminar seu poema. Contudo, o corpo ressentiu-se
de tão intensos acontecimentos e também da chuva, entregando-se a uma gripe
monumental que o impediu de participar do sarau. Aborrecido, teve de
contentar-se com ouvir os comentários dos amigos, dos quais muito poucos lamentaram
sua ausência. O mais triste porém foi uma crítica que lhe fizeram, aliás
injusta. Consta que um dos presentes ao evento, ao saber do motivo de sua falta
de comparência, comentou: "Saiu para comprar cigarros debaixo de uma chuva
daquelas? Veja você a que ponto o vício leva o ser humano!"
Poucos sabem, mas foi esse comentário quem sepultou uma carreira
literária que, dizem, prometia muito. Aquele autor da "nova geração"
sentiu-se desgostoso ao ser tachado de viciado e não quis, por excessivo
cálculo e pudor, desfazer o mal-entendido. Ele terminou seus dias sem cigarros,
pois fumar já não tinha razão de ser (a menos, claro, que ele quisesse
confirmar um vício inexistente) e sem o reconhecimento literário que tanto
buscara.
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Excelente o seu conto, Ailton. Muito bem narrado o conflito interior do personagem, com um desfecho notável. Gostei muito.
ResponderExcluirUm abraço
Celêdian
Obrigado, Celêdian Assis, pela leitura e comentário. Fico feliz que tenha gostado! Abraços!
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ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPor culpa da saida pra comprar cigarros perdemos um grande escritor.
ResponderExcluirMuito bom o conto Ailton. narrativa bem descrita. vc sente o personagem se movimentando. muito bom.
Te desejo um feliz 2014 pra ti.
Abração.
Olá Rodrigo! Fico feliz que tenha gostado do conto. Tento entrar naquilo que estou escrevendo e acho que é por isso que dá para sentir os movimentos do personagem, mas acho que eu sempre levo meus personagens a perder-se por já não saber como terminar. Feliz 2014 para você também! Abraços!
ExcluirParabéns Ailton Augusto, seu conto foi muito bem narrado, e a expectativa do encontro da palavra fatídica deu o mote à história. Afinal, se não saisse para comprar cigarros não teria tido o vislumbre do poema. Porém, há males que vem para o bem... parou de fumar, e não embrenhou-se na falsidade dos "amigos". Muito bom! Adorei!
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