Por
Michele Calliari Marchese
Em honra a Mário Bittencourt.
Não se lembrava de
quando tinha envelhecido. Espantou-se ao escutar a esposa dizendo que fazer
noventa e dois anos era muito difícil. Ficava pensando se ela falava dele ou de
outra pessoa, e bastava alguém passar a mão em suas costas num sinal de consolo
que sabia perfeitamente que era ele o senil. Não recordava de comemorações de
aniversário e tampouco dessa última, a dos noventa e dois. Quando foi isso?
Precisava pensar. Pegou
um papel envolto em plástico e passou os dedos para tirar a água da chuva que
molhava as diretrizes que o comandante havia lhe passado. Como estava difícil
de enxergar, esperou um clarão de um bombardeio qualquer para ler e firmou as
vistas e ajeitou o capacete para proteger-se daqueles pingos infernais.
Tinha urgência em saber
qual era o passo a seguir. A tropa aguardava o comando e as respirações tiravam
a sua concentração.
Ouviu a esposa
pedindo-lhe se estava com frio, e mesmo sem resposta ela envolveu-o numa manta
tricotada e perfumada. Sentiu o cheiro dela e também da pólvora. Tinha que
agir.
Ele comandava aquela
peça de artilharia naquele exíguo pedaço de chão e usavam os mortos para se
protegerem. Agradeceu com uma olhada para o alto, pois a chuva levava o cheiro
do sangue de seus companheiros e de tantos outros que sequer conhecia por nome.
Obedeciam-lhe, era certo.
Sentiu o aperto de mão
da mulher que falava com amor e sentiu o calor do lar a confortar seu peito.
Retribuiu o aperto de mão com um aceno de cabeça, poderia ser a última vez que
veria o seu imediato. “Vão! Vão!” Corriam assustados, confiantes na ordem
recebida e pensou quantos daqueles achavam que voltariam para casa, e sentiu
uma fome dos diabos.
Comeu com avidez a papa
de bolacha com leite que a esposa carinhosamente lhe dava. A cada colher metida
em sua boca, vinha-lhe um beijo de amor. Aquele amor que ele deixou para trás
quando foi convocado para a guerra. Nunca se arrependeu de ter levado a foto da
namorada, pois era aquele olhar de mulher apaixonada que o fazia viver no meio
de tanta dor .
Engatilhou o fuzil em
alerta, molhado. “As crianças não”, pelo amor de Deus. Tudo podia ver, mas não
matar inocentes. Repetiu a ordem em voz alta, se perguntando se ele mesmo não o
tinha feito num momento de loucura. Antes enlouquecer do que cometer um ato que
nunca iria esquecer .
Foi quando colocaram uma
bolinha de plástico em sua mão que saíra daquele sonho longínquo do passado
miserável que tivera. Ensaiou um sorriso para aquela que esperara o retorno
dele para poderem se casar. Amava-a mais que nunca e pensou que estavam
aguardando ele jogar a granada naquela trincheira inimiga e então tirou a
argola e a bolinha rolou perto de seus pés.
“Você sempre joga a bola
para que eu pegue”, lhe disse a velha esposa. E ele escutou o barulho da
explosão, os gritos que nunca mais saíram de sua cabeça e o cheiro de muitas
mortes e da terra molhada. Aquilo era o inferno. Avançaram até a trincheira
explodida, verificaram as baixas, mataram aqueles feridos e num frenesi de
loucos informaram o comando que a operação tinha sido bem sucedida.
Deveria montar guarda
naquela noite, mas a mulher lhe disse num sussurro de arrepiar que era hora de
dormir, ao lado dela e bem juntinhos como faziam desde sempre e foi acordado de
supetão pelo imediato que lhe disse necessitar de ajuda, pois que havia
inimigos rondando por ali. Tinha-os visto num virar de olhos passando por baixo
de algumas árvores mais adiante. Engatilhou o fuzil, ficou olhando para aquele
lugar e foi só depois que o dia clareou que viu a esposa lhe trazendo um copo
com água e a dizer o “bom dia” mais quente de sua existência.
Precisava urinar. Era
uma urgência febril, vivia molhado e com frio, decerto pegou alguma coisa que
lhe fazia doer a bexiga e os testículos e no meio de tanta dor escutou a voz da
filha a lhe gritar da cozinha que tinha chegado para ajudar. Tinha orgulho dos
filhos, eram a extensão dele e de sua esposa. Pensou que sabia exatamente como
ela seria no dia em que nasceu. “As crianças não, porra”. Gritou novamente para
um soldado que estava totalmente ensandecido com tanta catástrofe ao seu redor
e atirava para todos os lados, e que por fim, não aguentou tamanha dor e deu o
tiro derradeiro em seu rosto manchado pelas lágrimas da exaustão.
Cavou o buraco para
enterrar o corpo ali mesmo no meio de tanta fumaça chuva e grito e tinha as
mãos cheias de terra e lágrimas e encontrou a bolinha de plástico que alguém
colocou ali. Tirou a lama das mãos e com a ponta da faca tirou a lama das
unhas. Estava cansado. Tinha noventa e dois anos.
Tirou a argola da
granada e jogou a bolinha a seus pés.
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Olá, Helena. Um conto bastante real e chocante. Algumas memórias nunca poderão ser apagadas. Gostei muito, pois além de bem escrito, prende a atenção até o final pela sequência bem amarrada dos fatos.
ResponderExcluirObrigada Ana pelas palavras! Infelizmente hoje ele encontra-se em coma no hospital, despedindo-se lentamente de uma vida de guerras. Foi o mínimo que pude escrever para um homem (meu tio) que foi muito importante em minha vida, e será sempre! Beijos
ResponderExcluirGostei demais de seu conto!Prendeu-me do começo ao fim. Parabéns, Michele!
ResponderExcluirObrigada Maria! Infelizmente ele faleceu no dia em que esse conto foi postado aqui no blog. Deixará tantas saudades que vai doer...Foi o último expedicionário em SC. Beijos querida e volte sempre!
ExcluirUma homenagem que, de tão bem escrita (escrita com a arte que só o sentimento verdadeiro e sincero produz) por certo sobreviverá à passagem dos anos e que os filhos dos filhos dos netos e filhos passem adiante. Desejo ao Sr. Mário muita Paz onde agora se encontra. A saudade fica, claro, mas as boas lembranças ajudam a aplacar e permitirão que ele viva, e que sua história não seja esquecida jamais.
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