Por Michele Calliari Marchese
Houve um dia em que a Neusa passou mal, mas
deixou para lá. Não gostava de incomodar ainda mais que o filho que carregava
em seu ventre nasceria em pouco tempo. Decerto seriam os males de um parto
prematuro.
Não eram dores o que ela sentia, mas sim um
desconforto visual. Via luzes explodindo à sua frente e o efeito era tão
verídico que quase desmaiou com o susto. Não acontecia com frequência, mas
depois de algum tempo, acabou por acostumar-se.
Dois meses depois, enquanto arrumava as roupas
do pequeno que nasceria, as luzes explodiram e em seguida apareceram cenas onde
estava somente com os três primeiros filhos. Não aparecia o quarto filho em nenhum
momento, e, segurando com as mãos a fralda que dobrava com esmero, presumiu
equivocadamente que aquele filho que estava na sua barriga nasceria morto.
Contou seus sentimentos ao marido, que logo foi
buscar a parteira. Ela viu, mexeu, ouviu e disse que nada estava acontecendo
com a criança e avisou a Neusa que assim que a bolsa estourasse era para mandar
um dos meninos chamarem-na.
A bolsa estourou naquela noite e a parteira
iniciou o parto sem nenhuma dificuldade, e quando disse à Neusa para dar uma força
e não houve resposta, foi que notou a palidez de morte na mãe desmaiada.
Conseguiu tirar o menino com uma pressa de
louca, entregou a criança ao pai desesperado que mandou os vizinhos chamarem o
padre. Tentou de todo modo e jeito reanimar a Neusa, em vão.
Ela estava quase morta. Quase. Não fossem as
luzes que explodiam em suas vistas.
O marido que entrou no quarto seguido do Padre
Dimas chorava muito. O que ele faria sozinho com quatro crianças e sem a mulher
que amava? Enquanto o Padre Dimas fazia a extrema unção, o marido, de joelhos
pedia que por uma misericórdia, qualquer uma, a deixasse viva para que pelo
menos o nascido fizesse anos suficientes para se virar sozinho. Assim, desse
modo, e somente depois disso é que ele permitiria a morte da mulher. Pedia em
voz alta e quem escutou sofreu de angústia, por não conseguir consolar o homem
naquela hora derradeira.
Mas então aconteceu o improvável — deram o
ocorrido por obra do pedido do marido — a Neusa estava mais viva que antes e
com os olhos abertos, pediu para ver os meninos. Foi uma comoção geral, já que
todos estavam lá para velar a pobre.
A Neusa ficou curada. E quem via dizia que o
único problema que ficou depois da quase morte era a dificuldade que a Neusa
tinha de enxergar. Para ela era difícil locomover-se com todas aquelas cenas
passando em frente aos seus olhos, ininterruptamente.
Batia nos móveis, não conseguia trocar a fralda
do neném, queimava-se no fogão, e foi tanto acidente que o marido contratou uma
mulher que fizesse o serviço da casa e ajudasse a Neusa no que precisasse.
Um
dia, não aguentando mais todas aquelas visagens, resolveu contar uma delas ao
marido, a que mais lhe incomodava. Contou que tinha visto que no dia do décimo
aniversário do pequeno, uma grande festa acontecia numa casa desconhecida.
Muitos riam e muitos choravam e assim que o filho assoprou a vela, outras se
acenderam dispostas ao lado de um caixão, onde ela repousava num sono de
cansaço. E contou mais. Contou que o bolo havia sido cortado por alguém que
chamava o pequeno de “meu” enquanto o marido pedia perdão com as mãos grossas
em seu peito. E aquilo a sufocava. Sufocava tanto que tinha dificuldades em
distinguir as visões da realidade.
E então o marido contou que pedira a ela em seu
leito de morte que ficasse um tantinho. Um tantinho mais, para que o ajudasse
com a lida dos filhos e pudesse tê-la mais algum tempo.
“Devia ter me deixado ir”, disse ela num
assombro que as próprias palavras lhe causaram. E repetiu: “Me deixe ir”.
O marido pediu se eram as visões do futuro que a
incomodavam e que por isso queria partir. Ela respondeu que as visões que tinha
não eram do futuro, e sim, de seu passado num futuro que se foi.
E o marido, então, com o coração apertado de
tanta dor, deixou-a partir.
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Lindo, Michele!
ResponderExcluirObrigada Heitor!
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