Por Michele Calliari Marchese
Aconteceu que numa tarde de sol a pino, o cidadão de nome Ubaldo estava
dando uma surra num sujeito já deitado na estrada.
Teve que ter uma interferência do pessoal que estava por ali; chamaram o
delegado que imediatamente carregou o ferido para a delegacia e levaram Ubaldo
no cartório para tomar uma água, fumar um palheiro e esfriar os ânimos.
“Peguei o noivo de minha filha e ela no sofá de casa.” Foi a única coisa
que conseguiu dizer, e muito baixinho até. Tanto que ninguém escutou.
Na delegacia, o homem surrado nada falou, só gemeu. O delegado por fim
resolveu segurar o rapaz num quartinho de despensa; não tinha cela porque não
havia presos, ou estavam mortos ou foragidos e nesse caso que outra comarca se
responsabilizasse. Foi atrás de Ubaldo, deixando o preso trancado a chave e
cuidado pela sua esposa, mulher envaretada dos diabos. Se fugisse ia tomar
outra surra e pior do que a que tinha levado.
O delegado voltou suando e com os botões da camisa aberta até o umbigo
revelando a montoeira de pelos pretos e grisalhos do peito. Todo mundo olhou
aquilo e, percebendo, tratou logo de abotoar a camisa e se enxugar um pouco com
um lenço puído que tirou do bolso da calça fazendo voar o pente pequeno e preto
que todos se abaixaram para pegar. “Obrigado”, disse o delegado e concluiu
“vamos para a delegacia, Ubaldo, o senhor sabe que deve prestar queixas contra
aquele indivíduo que o senhor surrou na estrada”.
Ninguém questionou a imparcialidade do delegado, primeiro porque tinham
visto um jagunço fugido no meio dos matos da Campina e segundo porque Ubaldo
era homem de bem e tinha uma única filha que contava já com 15 anos e um bom
casamento à vista com um sargento lá de Pato Branco que ele ainda não conhecia.
Tinha feito os acertos do casamento com o pai do rapaz e este devia se
apresentar por aqueles dias.
Ubaldo pensou, relutou, mas foi na delegacia. Achava que o delegado
tinha os poderes e a tecnologia para chamar o governador, seu compadre, e por
quem nutria grande confiança e também porque tinha chegado um telégrafo que
ninguém sabia o que era, mas era o progresso.
O delegado acabou concordando e enviou a mensagem que dizia assim: “AK
saudações pt Urgente sua presença Campina pt Ubaldo pt”. Ninguém imaginava que
quinze dias depois, chegava à Campina da Cascavel o ilustre governador, com a
barba passando o queixo, os cabelos desgrenhados, cheirando a suor de cavalo e
a camisa aberta até o umbigo, que ninguém olhou. Nem bem desceu do cavalo
exigiu a presença do compadre Ubaldo.
Toda a população se aglomerou em volta do cavalo do governador e de sua
comitiva que era composta por mais dois cavalos e dois policiais à paisana.
Ubaldo chegou e ficou horas conversando com o governador e então ele
irrompeu pela porta e disse: “quero ver o meliante”.
“Meliante? Meliante? Quem
é esse? Aqui não tem ninguém com esse nome.” Gritava a população em polvorosa.
O governador, após revirar os olhos, disse “Quero ver o velhaco que
engrupiu Ubaldo no que há de mais sagrado”.
“Ah!” Disseram todos em uníssono. “Está na delegacia”.
“Então vamos para
lá” disse o governador raivoso. E a turba foi atrás.
Lá chegando, encontraram um bilhetinho na porta de entrada da delegacia
com letras miudinhas e que dizia mais ou menos assim: “Viajamos para Palmas ver
os filhos, voltamos em vinte dias”.
Ninguém sabia há quanto tempo aquele bilhete havia sido escrito.
Começaram a procurar até que sentiram um cheiro de podre vindo de algum lugar
por ali.
Resolveram arrombar a porta. E mais uma, a porta da despensa. A maioria
vomitou, mas o governador não. Revirou o cadáver e encontrou uma carta e uns
documentos rasgados e concluiu: “Ubaldo, agora você tem um problema a menos. Ou
um a mais”. Dito isso deu meia volta e junto com a comitiva pegou a estrada de
regresso à capital deixando uma nuvem de poeira que ninguém jamais esqueceu e
que foi contada aos filhos e aos filhos dos filhos como sendo o dia mais
glorioso da Campina da Cascavel.
Ubaldo, com os documentos do morto na mão, baixou a cabeça e foi embora
com o tabelião.
Meses depois, a filha de Ubaldo que ficou repentinamente viúva dera à
luz um menino forte e saudável chamado Angelo ou Angelin como ela o chamava.
Dizem que a viúva nunca mais quis se casar e Angelin quando ficou moço
se bandeou para os lados do Paraná e nunca mais voltou. Queria ser jagunço.
Estava no sangue.
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Um texto impregnado de humor, onde o horror não intimida nem prevalece, apenas alimenta o que já é engraçado. Poucos sabem brincar com a morte ou falar da agonia, apenas para direcionar o leitor pela satisfação ou divertimento. Parabéns amiga Michele, mandou bem.
ResponderExcluirObrigada Carlos, suas palavras são encorajadoras!! Abraços e volte sempre para ler.
ExcluirE pensar que o Angelin "era a chegada do próprio amor" (vide O Causo do Homem). Muito bom, Michele, parabéns!
ResponderExcluirSim Helena, o Angelin era o próprio amor chegando, sendo ele jagunço ou não! Beijos querida
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