Por Michele Calliari Marchese
Oras, todo mundo sabe da
catastrófica localização geográfica da Campina da Cascavel de modo que não
seria novidade alguma o grande aguaceiro acontecido no início do século
passado.
Começou quando a Dona Silvia
estendia as roupas brancas do marido no varal de bambu. Fazia um calor dos
diabos e não tinha vento.
Era um mormaço que vinha de
baixo, da terra, e que não dava tréguas ao suor que escorria pelas pernas, cuja
saia estava feita em um nó próximo aos joelhos para suportar o calor da
lavação. Estava tão cansada e traída que acabou tendo uma vertigem e caiu de
costas no chão quente. A luminosidade não permitia que abrisse os olhos, mas
com as mãos postas no rosto pôde vislumbrar as nuvens escuras e grossas que avizinhavam.
Levantou num ímpeto,
desamarrou a saia e saiu correndo pegar a ramagem benta pelo padre e queimá-la
na frente da futura tormenta.
Toda vez que saía da casa
tinha que acender a chama na ramagem no fogão a lenha — um vento tépido lhe
soprava e apagava o fogo. Assim foram repetidas vezes, tantas que não percebeu
que os ramos bentos já se tinham extinguido durante o entra e sai. Bufou e foi
recolher a roupa do marido que estava seca.
As nuvens carregadas e
ameaçadoras estavam cada vez mais perto e ela não tinha mais com o que benzer,
mas decerto que alguma vizinha já estava fazendo o que ela não conseguira
fazer. Tranquilizou-se e notou a falta de um dos tamancos do marido. Onde
estaria? E começou um vento que ventava metade para baixo quente e metade para
cima, frio. Não sabia que sensação agradável — porém doída nas orelhas — era
aquela que experimentava naquele momento. Sentiu uma precipitação dentro de si,
uma vontade de largar tudo e ir com o vento, mas lembrou-se do tamanco
desaparecido e voltou a si. O marido precisaria do sapato, pois só tinha
aquele.
Agachou-se para procurar, em
vão. Além das saias que levantavam com o vento, as roupas secas insistiam em
sair dos braços e seus cabelos já estavam desgrenhados a ponto de Dona Silvia
não saber mais em que pensar: se na traição, se no sumiço do tamanco, se no
desembaraçar dos cabelos ou na tormenta que estava prestes a cair.
Pior mesmo era a desaparição
do tamanco do marido.
O homem era um atormentado.
Era exigente demais, chato demais, e ainda por cima o dito era bígamo. Bígamo.
Foi a comadre que contou num sussurro e Dona Silvia levou quase um mês para
saber o que “bígamo” significava, e quando soube levou um susto tão grande que
não quis nem saber quem era a outra. Ficou pensando e pensando e pensando e
agora com o tamanco sumido, poderia lhe atirar na cara a bigamia. Que tivesse
perdido o tamanco na casa da outra e voltara com um pé no limpo. Que fosse lá e
que ficasse em definitivo.
Mas não. Voltou com os dois
pés, sujos, dentro dos dois tamancos, também sujos, para que ela e não a outra
lavasse os bandidos. Resolveu jogar o par limpo fora, no rio, naquela parte bem
funda. Mas o maldito boiou e veio tal qual terneiro a mamar na teta,
devagarzinho que dava ódio.
Resolveu cavar um buraco e
enterrar o calçado. Largou as roupas que saíram voando em redemoinho. Tentou
agarrá-las, mas o buraco era mais importante.
Enterrou o tamanco do bígamo
o mais fundo que pôde e foi para casa suja, com poeira a lhe arder os olhos e
com a alma lavada. Sentia que podia tudo, até com a borrasca que desabaria em
seguida. As nuvens estavam bem acima de sua cabeça e havia anoitecido sem ela
perceber. Só notou que os cabelos caíram em seus ombros como uma assombração; o
vento tinha parado.
Justamente nessa hora o
marido chegou a reclamar dos tamancos. Ela deu uma última espiada para o tempo
e disse ao marido que os sapatos estavam secando em cima das pedras do rio e
que ele podia pegá-los se quisesse, pois que ela estava atrapalhada com as
roupas.
No mesmo instante que os dois
cruzaram a porta, ela quando entrou e ele quando saiu, ele percebeu que não
havia roupa alguma nos braços da mulher, mas duvidou, porque naquele exato
momento a porta se fechou a tranco e a tempestade desabou. Não via nada nem a
um palmo do nariz. Era desesperador.
Dona Sílvia exclamava
prazerosamente em cada janela que fechava: “Enfim, o dilúvio”. E o bígamo que
corria naufragando e cego pela chuva sempre atrasado a chegar às janelas,
sufocava com a água que caía ininterruptamente tentando dizer “me deixe
entrar”.
*Do latim: “finalmente, o dilúvio”.
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Joia! Os alunos adorarão esta história e com certeza será um ótimo tema de aula.
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