Por Michele Calliari Marchese
Esse causo aconteceu com a Dona Edite casada com
o tal de Victor Hugo.
O dito era pedante, perdulário e impossível,
transformou a vida da mulher num inferno psicológico e numa prisão tenebrosa.
Naquela época, o divórcio não era possível, tanto que a separação nem passava
pela cabeça da esposa.
Quando morreu de tanto beber naquela noite no
bar da Dona Luiza, levou tudo consigo. Para as graças da mulher.
Quando a Edite soube da morte do peçonhento,
ficou estática como num sonho. Pediu mais de mil vezes se era verdade e não
acreditando em nenhuma das vezes que lhe contaram, foi até o bar para ver com
os próprios olhos e com os nervos em frangalhos. Não soube o que fazer naquele
momento. Estava tão feliz e livre do Victor Hugo que abandonou o corpo do morto
ali mesmo na estrada e foi para a casa que agora era sua. Começou abrindo
portas e janelas, ergueu as cadeiras, soltou o cachorro e passou a limpar
freneticamente a casa. E o povo a esperar pelo enterro.
O morto ficou ao ar livre, largado no meio do
pó, porque ao pó haveria de retornar e nada da mulher aparecer. Por fim, o
Padre Dimas mandou que a chamassem para dar início às exéquias.
Acontece que a morte se deu enquanto era noite
fresca e ninguém imaginaria que não houvesse um velório imediatamente após o
passamento do infeliz e foi quando a catinga tomou conta da cidade que ninguém
mais se atreveu a encostar um dedo no morto. A Dona Edite que olhava tudo
impavidamente resolveu tomar as providências muito a contragosto.
Pegou a carroça do vizinho, dois cobertores de
casal, pediu ajuda aos transeuntes e levou o maldito sem ninguém saber onde;
sem as rezas de fim de vida, sem velas e sem choro.
Só ela em cima da carroça, num galope de asno
que parecia um passeio de namorados, ela e o marido hirsuto. A única diferença
era que as rédeas tinham trocado de mãos.
Soltou os cabelos e a guia e resolveu entrar num
mato que tinha atrás do cemitério. Largou o corpo de chofre e partiu.
Um velho que morava nas cercanias da desova, viu
tudo e resolveu enterrar o pobre diabo, deixando as cobertas dobradas e
arrumadas. Daria destino a elas e avisaria o delegado depois, se lembrasse.
Cansado da lida, esqueceu-se delas e do delegado.
No dia seguinte, quando acordou sóbria daquele
funesto, deu-se conta de que nada lhe faltava, tampouco o ar quente da manhã.
Um arrepio passou pelo seu corpo e resolveu que daria uma última olhada no
ex-marido e pensando melhor o enterraria num caixão. Tudo bem certinho, como
manda o figurino e para não lhe pesar a consciência.
Foi a pé analisando cada hora passada ao lado do
Victor Hugo e a cada passo que dava maior era a sensação de alívio.
Quando chegou ao lugar encontrou as cobertas
dobradas, como era o hábito do falecido e o corpo tinha desaparecido. Ficou
apavorada e uma taquicardia lhe podou os movimentos e o pensamento.
Era vivo o Victor Hugo?
A essa ideia, a visão turvou e sentiu a
dormência anterior ao desmaio. Recuperou-se bravamente e torcendo as mãos
começou a olhar ao redor, esperando que a qualquer momento aparecesse o homem
pelo meio do mato rindo sarcasticamente e batendo palmas.
Correu sem direção e não soube como chegou a
casa e parando abruptamente na soleira da porta questionou como é que tudo
estava aberto se o Victor Hugo não gostava daquilo.
Louca, tratou de fechar tudo e de manter tudo no
mesmo lugar de antes e sentou desesperada numa cadeira em frente à porta a
esperar o marido que haveria de chegar sem demora.
Muitas coisas fúnebres passaram pela cabeça da
Dona Edite que inconscientemente começou a balançar-se com as costas na cadeira
e a torcer as mãos.
Foi encontrada morta uma semana depois pelos
vizinhos preocupados com o claustro e disseram irresponsavelmente a todos que o
passamento deu- se pela saudosa e sofrida falta que ela sentia do marido.
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