Por Michele Calliari Marchese
Todo mundo sabe que os
primeiros moradores da Campina da Cascavel foram os caboclos. Desbravaram nossa
linda terra e foram abortados quando do início da colonização acontecida após
1917. Uns eram agricultores, enquanto outros criavam animais e assim sobreviviam
com parcos recursos, todos analfabetos e sem documentação sobre as terras que
acabaram sendo devolutas ao Estado e posteriormente vendidas aos colonizadores assim que aconteceu o Tratado de Divisas em 1917, após a Guerra do Contestado.
Essa é a história do
caboclo João, que tinha um pedaço de terra muito linda e produtiva, uma casa
com chão de terra batido e uma família de dar gosto. Viviam felizes e se
amavam. Todos se ajudavam e, nas noites de lua cheia, se sentavam ao redor do
avô para ouvi-lo contar causos de tesouros. Foi no inverno que aconteceu de
chegarem gentes brancas por perto de sua terra. Eles construíram casa, moinho e
tinham mulas. Plantavam sementes desconhecidas e fizeram um cercado para as
galinhas. Coisas que o João sequer sabia que existiam, e se assustou com a
brancura daquelas crianças, que decerto estavam desnutridas; se assustou com a
cor dos cabelos de um menino que deveria ter no máximo 4 anos. Eram brancos como
as nuvens.
Benzeu-se e correu contar
a novidade para a família, que tratou de se esconder dentro de casa, por medo
de ser aparição de alma penada.
Com a chegada dessas pessoas, muitos conhecidos
do João perderam tudo o que tinham por causo de um documento, que dizia –e
eles tinham que acreditar, pois não sabiam ler nem escrever –que aquela terra
era deles. E mostravam com os dedos os seus próprios nomes escritos nos
documentos e diziam que tinham comprado aquele chão e que aqueles que estavam
lá não deveriam estar, mas que por uma misericórdia eles deixavam pegar seus
pertences para irem-se embora.
Ir para onde?
Pois o João ficou
assustadíssimo com a quantidade de amigos seus, compadres entre si, sumirem de
uma hora para outra e resolveu agir antes que acontecesse o mesmo com ele. Não
tinham a mínima noção do que estava acontecendo, mas sabia em seu íntimo e
quando olhava seus filhos, que alguma coisa estava errada. Não culpava aquela
gente nova que chegara por ali, decerto tão ignorantes quanto eles. Culpava
alguma coisa que ia além da sua compreensão, porque não sabia de colonização
alguma, sequer sabia o que “devolutas” significava e não entendia patavina
daqueles documentos que eram apresentados a todo o momento.
Resolveu embrenhar-se no
mato, o mais distante que o seu corpo pôde ir. Andou um dia inteiro margeando o
rio e quando achou o lugar seguro para morar, abriu a mata com um facão de pau
de guamirim e não descansou até não ver uma edícula pronta para receber a sua
família.
Levou outro dia inteiro
para voltar e quando chegou em casa, encontrou uma família exigindo aquele
pedaço de chão e a mostrar-lhes documentos ilegíveis e então o João pediu pelo
amor de Deus que esperassem levantar a mudança que iriam embora, e o genitor
daquela família de migrantes pediu se eles queriam ficar como empregados dele,
mas o João que tinha lá no fundo da sua alma o sentimento do orgulho, pensou
por um momento e olhou seus filhos e sua esposa e o seu pai que estava
encostado no vão da porta com a cabeça baixa.
E foi quando ouviu
daquele homem, que se ficassem todos trabalhariam na lida e receberiam alguma
ajuda que resolveu de fato ir-se embora dali. Filho pequeno não pode ir para a
roça, nem velho e tampouco mulher.
Juntou o que pôde em
pedaços de panos velhos, cada um com o que podia carregar e foram embora dali
para sempre. Deixando para aqueles migrantes, uma vida inteira de trabalho e
aquela casa de amor. Levaram muito tempo para chegar naquela edícula construída
no meio do nada e foram margeando o rio para matar a sede e alimentarem-se
quando o mais velho dos seus filhos avistou alguma coisa na água e resolveram
içar com um galho de árvore.
Ficaram enojados e
pesarosos diante daquele corpo já putrefato, conhecido do João, pois era o
compadre Batista que ali se apresentava morto pela água, ou por sabe-se lá o
quê.
Quando começaram a cavar
uma sepultura digna para aquele homem, os filhos gritaram pelo pai, e a cena
foi deveras angustiante para aquela família que só tinha o orgulho e a vontade
de trabalhar. Eram mais de meia dúzia de corpos boiando no rio, e a mulher do
João vomitou. Tinha criança junto.
Era a família do Batista.
O velho percebeu em seu
íntimo o que aquela cena representava, pois que se tivessem ficado naquelas
terras, seria o destino deles também. Lembrou que o Batista brigou feio na
comunidade por causa da sua terra. E o João tinha tomado as dores daquele
compadre.
Ele levantou –pois
estava cavando o túmulo –rolou o corpo de volta para o rio para que seguisse
junto com a família que boiava, pegou os pertences, cutucou cada um dos seus,
pois que não conseguia falar por causa da emoção e partiram, e nunca mais se
soube deles e de seus descendentes.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTriste, realmente, mas muito bem escrito e cativante para o leitor...gostei muito, parabéns!
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