Lá pela segunda metade da década de 30, pelas bandas da Fazenda São
Geraldo, na antiga Rio do Peixe, hoje Piracema, circulavam as carroças de
rústicas rodas de madeira e também os carros de bois que transportavam os
carregamentos de lenha, latões de leite, de cana de açúcar, de milho e outros
mantimentos, além daquela gente que precisava se deslocar das fazendas para os
povoados, ou para as cidades que existiam por perto. Era comum e uma verdadeira
alegria quando havia algum festejo na vizinhança, nos lugarejos. As famílias
aprontavam malas e matulas para se acomodarem nos carros de bois e seguirem em
suas viagens.
Na semana santa era, então, uma viagem tradicional e muito especial. Havia
muitos preparativos durante semanas que a antecediam. Roupa nova para toda a
família, vestidos que eram costurados e enfeitados pelas moças, com todo
esmero; latas e latas de biscoitos de polvilho, pães de queijo, roscas, broas,
tudo preparado cuidadosamente nos fornos de barro. Preparavam um tipo de
biscoito cozido e assado, muito cobiçado, que ficava bonito, brilhante e que, curiosamente, era feito só naquela ocasião, talvez por ser muito trabalhoso, ou
sabe-se lá se por alguma crença em especial; doces caseiros, goiabada cascão
feita em tachos de cobre, doces em calda de mamão, laranja da terra, doce de
leite e não podia faltar o queijo fresco e o curado, queijos tipicamente
mineiros; as carnes de porco embebidas na gordura talhada, além de todos os
outros alimentos que sustentariam as famílias, durante uma semana, fora de casa.
Tudo pronto e com o sortimento completo, pegavam seus colchões de palha e
seguiam para a cidade, onde se instalavam em casas que mantinham para essas
ocasiões, ou em casas de algum parente. Algumas pessoas seguiam o trajeto a pé,
seguindo os carros de bois.
A estrada que ligava a fazenda à cidade era estreita, poeirenta e
bastante irregular, segundo me contaram, foi aberta a golpes de enxadões. Por
aquelas bandas, automóvel era desconhecido da maioria das pessoas. Foi numa destas idas à cidade que Dalva viu, pela primeira vez, um automóvel. Ela era ainda uma criança e seguia a pé junto
a alguns irmãos, acompanhando os carros de bois que transportavam a sua
família, o que para eles representava uma grande aventura. De repente, Dalva
avistou um automóvel que apontou na curva e que provavelmente também passava
por ali pela primeira vez. A estrada era ladeada pelas cercas de arame farpado
que dividiam terras e também serviam de limites para o gado. Quando ela avistou
o carro, saiu em disparada, gritando assustada, passou por debaixo da cerca e
se escondeu atrás de um cupinzeiro. Seus irmãos, sem entender nada, se
apavoraram e cada um correu para um lado. Os bois se assustaram e os boiadeiros
tiveram trabalho para contê-los. Era preciso encostar os carros de bois para
dar passagem ao carro, mas tiveram que tocá-los ainda por um bom espaço, até
que encontraram uma brecha na estrada estreita. De modo que aquele cortejo
durou alguns minutos e na preocupação de resolver aquela situação, a família
esqueceu-se da menina, que continuava acuada e escondida atrás do cupinzeiro.
Há alguns meses, Tia Dalva, já então com oitenta e quatro anos,
assistia uma chamada na TV sobre corridas de Fórmula I e comentou: - Fico vendo estes carros de hoje, estas
corridas malucas e fico pensando como as coisas mudaram nos últimos oitenta
anos. Como a gente era atrasada e sem recursos. Ela lembrou-se
da tal aventura com o carro e dizia entre risos que aquele foi um momento de
pânico, do qual se lembrava perfeitamente. O carro preto pareceu-lhe um monstro
e o seu maior pavor foi imaginar que ele não poderia parar quando se
aproximasse dos carros de bois e assim passaria por cima de todos. “Por mal dos pecados”, ainda a deixaram
para traz e ela não sabia o que fazer ali escondida e esquecida até que Lêda,
sua irmã mais nova, lembrou-se de voltar para procurá-la e a encontrou chorando
copiosamente. Lêda muito esperta fez com que Dalva acreditasse que ela se
salvou por milagre, pois se não a tivesse encontrado e ela ficasse ali sozinha,
quando escurecesse o enforcado Antônio do Tipêdra (uma outra história para
contar) apareceria para ela e sabe-se lá o que poderia acontecer. Dalva ficou
ainda mais apavorada. Lêda então fez com que ela prometesse fazer uma
penitência durante a semana santa e oferecesse às almas o seu sacrifício. Foi
logo sugerindo: - Você fica sem comer os
biscoitos cozidos e assados que Mamãe distribui para nós e como fui eu quem te
salvou, você aceita os seus e passa para mim, combinado? Os tais biscoitos eram os preferidos de Lêda,
e como só eram preparados apenas nesta época, seria uma boa oportunidade de se
fartar deles.
As meninas voltaram e se reuniram ao grupo, prosseguindo rumo à
cidade. Ambas ganharam alguns puxões de orelha de meus avós, pois estavam
atrasando a viagem. Chegaram enfim à cidade e se acomodaram na casa da rua
principal, bem perto da igreja matriz. Era o sábado que antecedia o dia da
procissão de ramos, início da semana santa. Trouxeram da fazenda, ramos de
alecrim, folhas de palmeiras e coqueirinhos, galhos de cipreste para a benção
dos ramos. A família muito religiosa fazia questão de participar de todos os
rituais e programações, mas para os mais novos, embora houvesse grande
respeito, muitas coisas que aconteciam eram para eles pura diversão. Na
procissão de velas acesas, divertiam-se queimando cabelos de quem ia à frente
deles na fila, deixavam pingar vela derretida nos pés de outros, entre outras
traquinagens.
Dalva, depois de passado o susto e o medo, pensava então em uma
forma de negociar sobre a promessa da tal penitência. Não estava achando boa a
ideia de perder seus biscoitos, mas de alguma forma teria que pagar a sua
promessa. Chamou Lêda e então fez uma proposta: - vamos pensar em alguma coisa que agrade muito aos nossos pais e como
recompensa pedimos mais biscoitos e doces e aí te dou os que eu prometi a você,
mas os outros que ganharmos, nós dividiremos. O que acha? Lêda achou ótima
a ideia e as duas passaram então a pensar no que fariam para merecer a
recompensa.
No domingo acordaram cedo e saíram de casa em casa onde havia
jardins e pediram aos donos que lhes dessem algumas flores. Elas recolheram
tantas flores quanto puderam e em um quarto dos fundos montaram um lindo bouquet. Assim que terminaram esconderam-no até o momento da procissão, quando pegaram o ramalhete, se postaram
em frente ao andor e fizeram todo o percurso da procissão, uma volta completa
naquele pequeno lugarejo. No retorno da procissão à Igreja, depositaram as
flores no altar. A família assistiu a tudo comovida e orgulhosa. De volta a
casa, as meninas foram muito elogiadas por aquela bela atitude, mas ninguém
falou em recompensá-las, como elas imaginaram. Foram dormir bastante
decepcionadas.
No dia seguinte, ainda durante o café da manhã, elas aguardavam que
o plano desse certo, mas nada aconteceu, os tais biscoitos não foram servidos a
ninguém. Minha avó chamou por uma delas e disse-lhe que ela deveria ir à casa
de uma senhora sua comadre, para entregar-lhe uma encomenda. Entregou a Dalva
uma cestinha coberta por um pano bordado e ela se pôs logo a caminho,
acompanhada por Lêda. No trajeto as
meninas perceberam que na encomenda estavam exatamente os biscoitos cozidos e
assados - se entreolharam e sorriram com cumplicidade. Passado algum tempo
retornaram e entregaram a cestinha vazia para minha avó. Perguntadas se a
comadre gostou do presente, novamente se olharam e inusitadamente Dalva, já tremendo
de medo de uma boa surra, sacou da resposta: - Ela nem viu os biscoitos. Tudo por culpa daquele carro preto que desceu
a rua correndo atrás da gente e nós tivemos que correr e nos esconder. Eu caí, mamãe, e lá se foram seus biscoitos.
Enquanto isso, Lêda saiu de mansinho até o jardim, apanhou uma rosa
e voltou para entregá-la à mãe. Essa, que nada tinha de boba ou ingênua, logo
percebeu a artimanha da menina. Foi à cozinha, apanhou alguns biscoitos e os ofereceu às duas filhas. Elas apenas se olharam e saíram em disparada, com um
baita enjoo, só de olhar para aqueles malditos biscoitos. Afinal, foram com
muita sede ao pote e comeram mais do que podiam.
Só depois de algum tempo, em uma conversa com minha avó, é que as
meninas souberam de sua intenção: oferecer os biscoitos a elas naquele momento
foi apenas um teste, já que ela havia desconfiado daquela história que lhe
contaram. Confessou que riu muito, mas disfarçadamente, e enquanto as meninas
corriam desesperadas ela pensava: - Deixa
estar, elas pensam que me enganam, mas a dor de barriga já está de bom tamanho!
Celêdian Assis de Sousa
Belo Horizonte - MG
Foto
de acervo pessoal - Piracema (antiga Rio do Peixe) – primeiro automóvel da
cidade
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Ah, que leitura agradável, deliciosa! Parabéns e muito obrigado, Celêdian.
ResponderExcluirBoa noite,que linda narração de uma bela e preciosa lembranças lindas e nostálgicas,de minha querida Piracema,obrigado,parabéns,Celêdian!
ResponderExcluirobrigado,parabéns,ótima semana e felicidades sempre,abraço fraterno e uma ótima noite!
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