Por Michele Calliari Marchese
Esse causo aconteceu
quando o tabelião resolveu comprar um automóvel. Foi na década de 30 e as
estradas eram intransitáveis; o dito cujo levou três meses para chegar à
Campina da Cascavel e veio em cima de um caminhão até Cruzeiro do Sul e depois
abriram trilhas a facão e o trabalho, feito por uma dezena de pessoas, era
lento e mitigado. Enfrentaram toda espécie de intempéries e muitas vezes
ficavam dias parados até que o clima amenizasse.
No dia em que o automóvel
chegou à cidade, o tabelião quase chorou de emoção; tinha as mãos no rosto e a
boca aberta e não sabia dirigir, mas aprenderia com aqueles que o tinham
trazido. Primeiro lavaria, esfregaria e poliria, depois beijaria e passaria as
mãos pela lataria para sentir o gosto daquela máquina impensável.
Era o progresso. Era a
felicidade.
As crianças logo
ajuntaram em torno do carro e foram repelidas bruscamente pelo tabelião,
ciumento de dar dó. E assim ele passou dias mostrando, averiguando – sempre de
pano na mão – entrando e saindo, ligando o motor e acariciando o volante. Tinha
os olhos brilhantes e remoçou no mínimo dez anos.
Aprendeu a dirigir e
comprou um terno novo para desfilar de carro na cidade e sua mulher enrolou os
cabelos em bóbis para parecer mais bonita lá dentro. Faziam pose e abanavam aos
transeuntes. Convidaram até o Padre Dimas para uma volta, mas ele declinou do
convite, afinal, era um homem de Deus e deveria manter a humildade dos votos de
pobreza – assim dizia.
Aconteceu quando o
Aparício, lá do Pesqueiro de Cima, vinha manso em seu cavalo para a cidade a
fim de comprar açúcar no comércio e escutou um ronco diferente, algo que nunca
tinha escutado em vida e então viu aquele demônio preto surgindo pela estrada e
assustou-se de tal modo que desceu do cavalo em disparada para esconder-se no
meio do mato.
O tabelião passou pela
estrada com seu automóvel e viu aquele cavalo abandonado. Parou, verificou os
freios, deu uma passada de camisa no espelho e desceu. Deu uma volta ao redor
do cavalo e não se apercebeu dos “psiu” que o Aparício fazia atrás de uma
árvore.
“Sai já daí seu tabelião,
corra ligeiro”, disse o Aparício muito nervoso. O tabelião escutava o homem,
mas não o via, adentrou o mato e ficou procurando, até que achou o Aparício
acocorado, com os braços nos joelhos, suando desesperado por alguma coisa muito
grave. O tabelião ficou preocupado com aquela cena inusitada e pediu-lhe se
estava doente. “Não”, lhe disse o Aparício, e tremia os lábios como se a
qualquer momento fosse ter uma síncope. “Se agache home, senão o demo vai te
pegar”, repetiu num sussurro aterrador. O tabelião se abaixou assustado,
decerto haveria por ali alguma coisa que ele não vira e da qual aquele homem
estava escondido. Ficaram os dois por algum momento em silêncio. Cada um
ouvindo a respiração do outro, o suor abundante, não tanto pelo calor, mas pelo
medo, e isso fez com que o tabelião começasse uma conversa. Pediu o nome do
assustado, o que fazia e de onde vinha e o Aparício respondia, sem pestanejar,
olhando por entre o mato de quando em quando, numa verificação de aproximação.
Era tão medonha a atitude
do Aparício que ele não se dera conta de que já estava deitado no chão,
tremendo também, suando mais que o normal e imaginando o inimaginável. Até que
por uma ordem da conversa, o tabelião pediu do que o Aparício estava se
escondendo. E o homem lhe disse que fizesse silêncio, pois com o barulho que o
tabelião fazia era bem capaz de serem descobertos em seu esconderijo. “Espere
que a besta saia”, respondeu.
E o tabelião ficou
pensando nas palavras daquele homem. “Besta? Ora essa! Que besta?” “A besta dos
inferno, seu tabelião”. E o tabelião pediu como era essa besta, para se
preparar para o pior, ou para se fingir de morto se o caso exigisse, mas
precisava saber. E o Aparício olhava pelo meio do mato e dizia: “É preto, tem
uns zóio branco esbugalhado bem na frente no lugar dos dente, ronca como o
diabo e no lugar dos pé, tem roda”. E ficou olhando a reação do tabelião que
esbugalhou os olhos diante da informação que batia minuciosamente com a
descrição do seu automóvel. Ficou um tempo parado, sem reação, pois passara
tanto medo que seus joelhos doíam e levantou-se num ímpeto, assustando ainda
mais o Aparício, que temia serem descobertos.
Depois de muita
discussão, um tal de puxa para baixo para esconder o tabelião e este
levantando-se, foi que o Aparício começou a entender o negócio.
O tabelião puxava o braço
do Aparício para mostrar-lhe o carro, e este se benzia sem parar e fechava os
olhos e quase chorara implorando para que o tabelião não o levasse para a boca
do satanás.
No fim do dia - porque
eles ficaram escondidos a tarde inteira - foi que o Aparício entrou no
automóvel para conhecer e ficou admirado com tanta inovação e tecnologia e
pediu como funcionava e sacou de um lenço que tinha no bolso da calça e
inconscientemente começou a lustrar todas as peças seguido dos suspiros do
tabelião.
“Um dia eu vou ter um
desses”, disse o Aparício ao tabelião e este lhe respondeu que um dia todos
teriam um desses. Era o progresso chegando à Campina da Cascavel!
*** Conto inspirado no
Livro “O velho Xaxim” da escritora Valdirene Chitollina. Fica a dica para
leitura ***
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Muito interessante, Helena, e divertido! Em minha região é comum, entreos mais velhos, histórias sobre as inovações ao longo do tempo. Parabéns à escritora.
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