Por Henrique
Mendes
Tenho comigo um livro de
páginas em branco, das quais apenas algumas apresentam anotações escritas à
mão. Achei que a maioria delas eu tivesse feito todas no mesmo dia, no maior
dos entusiasmos, e que depois esse entusiasmo teria definhado e talvez sumido.
Parece que não foi bem assim.
Os números surpreendem-me, e desconfortam-me. Na primeira página, vejo escrito
pelo meu punho, laconicamente: “Começado a 3 de Dezembro de 1975”. Depois,
abrindo-o ao acaso, encontro anotações de 1979, outras muitas sem data, algumas
de 1988, de 1992 de 1994 de 2000, e até
mais recentes, já de 2010.
É um livrinho quadrado, de
capa preta, que atravessou muitos anos junto comigo, bons e maus períodos, de
farturas e carências – algumas delas insuspeitadas, mas presentes apesar de
tudo. Chama-se o “Livro das minhas Citações”. Está forrado desde o primeiro dia
com um plástico transparente e forte, como se já então eu pudesse adivinhar que
iria dar-lhe muito uso, coisa que, pelos vistos, fiz sem sequer me aperceber.
E nele eu guardo uma memória
condensada (não é isso, afinal, que são todas as citações?) de um sujeito
chamado Babbit cujo nome dá o título ao livro, saboreado em detalhes nas minhas
longas noites africanas. Ou de africanista, dependendo do olhar.
Essa memória refere-se à
tomada de consciência de Babbit, ao momento
em que ele descobriu que podia escolher. E que isso, essa escolha, era a
vida, com a qual podia fazer o que quisesse:
“Durante minutos, horas, toda
uma eternidade, ele ficou na cama acordado, tremendo, atemorizado,
compreendendo que acabara de conquistar
a liberdade e perguntando a si próprio o
que faria de uma aquisição tão nova e tão embaraçante...”
Às vezes sinto-me assim. Preparo-me para grandes batalhas, e acabo ficando quase
desiludido quando vejo que não as travarei.
Já conhecedor de outras escolhas
possíveis, que me são mais satisfatórias, dificilmente pelejarei usando as
armas mais óbvias ao meu dispor, com as quais a minha intimidade seria,
entretanto, total.
Talvez piore, assim, a
qualidade do meu combate, não sei. Mas combato mais nos meus termos e da forma
que escolho.
Também eu, um dia, me vi
assim acordado na cama, atemorizado, completamente ciente de que estava sozinho
no mundo. Totalmente livre, por um lado. Totalmente desprovido de alguém a quem
pedir ajuda, por outro.
Nessa noite tardia, no desconforto carinhoso de um
quarto emprestado, só o Pipocas, sentado nas patas traseiras, me olhava nos
olhos e parecia ver mais fundo dentro de mim do que alguém jamais tinha visto.
Então, no seu silêncio de cão telepata, juntou à minha, sem a menor hesitação, a
sua vida e o seu destino, sabendo – mais do que eu – que jamais o desapontaria.
Voltou a olhar-me dessa mesma
maneira, vários anos depois. Estava no meu colo, muito doente, e iria começar a
fazer efeito nele uma injeção que lhe tinha sido dada sob minha
responsabilidade para que não sofresse mais. Olhou-me diretamente nos olhos,
por muito tempo. Depois apoiou o focinho no meu braço, acomodou-se, e abanava o
rabo quando adormeceu. Foi dormindo cada vez mais. Enterrei-o num lugar que ele
gostaria de explorar, se estivesse vivo, sob uma pequena ponte antiga de pedra
rodeada de flores. No lugar, brincam até hoje pássaros e borboletas, indiferentes
à auto-estrada logo ali ao lado, e aos anos que passaram, e nem sabem que há
coisas que não se esquecem.
Nota: Este texto foi aqui reproduzido com a gentil permissão do autor e não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores deste site.
© 2014 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
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Obrigada, Henrique Mendes, por deixar nosso espaço mais bonito com tão sensível narrativa. Volte sempre que desejar, abraços!
ResponderExcluirConto bonito, sensibilidade pura. adorei o final, muito bom, essa relação entre o cão e o seu dono.
ResponderExcluirAbraço.
Obrigado Helena pelo convite de raspão para esta maravilhosa leitura. Ao Henrique, aplausos. Maravilha de narrativa e como foi dito, no comentário acima: Linda relação homem e animal. Parabéns ao autor.
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