Por Beatriz Mecking
Morava no casarão — que
os vizinhos chamavam de castelo — desde que nascera. Tinha-o visto cheio de
gente, avós, pais, tios, primos, empregados. Aos poucos, ele foi-se despovoando,
ficando mais vazias as suas peças. E, por fim, sem que quase se desse conta,
acordou um dia sozinha. O marido morrera, os outros se haviam dispersado.
Caminhou pelo corredor e chegou à sala, velha sala de móveis pesados, onde se
destacava um Modigliani. Um Modigliani, não; preferia pensar na Modigliani, a
mulher que, com seus olhos rasgados, impunha seu poder sobre o ambiente.
Continuou a vistoria pela casa. Subiu as escadas, sem que o olhar se
desgrudasse da figura. Aquela mulher parecia-se com ela; melhor, ela se parecia
cada vez mais com a Modigliani. (Outra Dorian Gray?...) Passou as mãos pelo
rosto, sentiu as angulosidades; deixou os dedos escorrerem pelos cabelos,
concentrada. Aquela mulher...
Subiu ao sótão. Ali se
haviam amontoado, ao longo dos anos, livros e revistas. Havia livros de arte,
revistas estrangeiras, um pouco de tudo naquele esparramo. Vestígios de um
tempo de fausto, época em que seus avós conseguiram coisas preciosas para
decorar o casarão. Sentou-se a uma mesinha que trouxera para cima — ali estava
a máquina de escrever (ainda continuava fiel a ela), papel à disposição, lãs
para tricotar, etc. Sentou-se, sem vontade de fazer coisa alguma. Uns restos de
sol espremiam-se pela janela, dando um calorzinho ao recanto. Encolheu-se e
ficou parada, pensando na limpeza que aquilo tudo estava por merecer. A última
empregada fora embora; não sabia se teria recursos para contratar uma nova.
Acendeu um cigarro. E
mais outro. O foguinho crepitando para se extinguir... Estava fumando demais.
Vender a casa era uma solução. Vender, desfazer-se de tudo, ir para outro
lugar. Pequeno, sem passado, em que apenas ela coubesse. Apenas ela; mas, e as
recordações? Haveria lugar para as recordações? Ou era melhor que não houvesse?
Não saberia responder.
Deitou-se tarde. O sono
foi interrompido por alguns sobressaltos. Gritos vagos se faziam ouvir. Foram
tão prementes que acordou. Incêndio, pareceu escutar. Incêndio, gritaram com
mais força. Ela sentou-se na cama. Já estava bem acordada. Pessoas agitavam-se
lá fora.
— Abra! Olha o fogo lá
em cima!
Abriu a porta e deixou
que agissem. Viu os bombeiros chegarem, acompanhou a operação. O sótão, pensava,
meu lugarzinho... E os fósforos? Os cigarros? A dúvida assaltou-a, penetrou
fundo: teria sido ela?...
Quando foram embora,
fechou a porta com a tranca de ferro. Não se animou a subir. Ficou embaixo,
caminhando pela casa, ao léu. Estava um pouco mais vazia, ela própria. Seus
olhos pecharam com os da Modigliani: ambas estavam inteiras, por enquanto.
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Adorei, Beatriz! Obrigada por engrandecer nosso cantinho! Beijos!
ResponderExcluirObrigada, Beatriz Mecking, por ter-me permitido reproduzir este belo texto aqui. Amei!
ResponderExcluirBelo conto.
ResponderExcluirCasas tem a grandeza de esconder bons mistérios e segredos.