Por Ildeu Geraldo
de Araújo
Estava casado com Cleonice há 15 anos. Nossa vida transcorria numa
normalidade que me agradava, pois sou uma pessoa tranquila, um tanto
convencional; pelo menos achava que era, naquela época. A objetividade de
Cleonice combinava com meu temperamento e os dias se sucediam numa confortável
monotonia. A decisão de ir a Buenos Aires obedeceu a razões práticas: eu tinha
um negócio a tratar na cidade, a estada seria paga pela empresa, a única
despesa seria a passagem para minha esposa.
Ir a um espetáculo de tango é uma obrigação para todo turista em
primeira viagem à capital portenha. Olhei, com má vontade, o ambiente
pretensamente luxuoso e sem dúvida decadente. Ocupamos uma mesa de pista,
pedimos um espumante e aguardamos o início do espetáculo conversando
amenidades.
Aos primeiros acordes do bandoneon, uma luz, vinda não se sabe de onde,
refletiu no drapeado das cortinas, conferindo-lhe um tom bordeaux e alargando o
espaço, como se as paredes recuassem. A plateia desapareceu, estava sozinho num
imenso salão. Sol, emergiu do fundo da pista de dança e caminhou na minha
direção, num passo ondulante que alternava uma perna vestida de negro e outra,
muito alva, inteiramente desvelada pelo rasgo de sua saia. Ela olhou-me como
nenhuma mulher jamais me olhou, nem antes nem depois daquele momento mágico. Um
olhar de desejo, de ternura e de entrega. Com um gesto me atraiu para seus
braços. Sem qualquer possibilidade de resistir, mergulhei no abismo daquele
convite e evoluímos pelo salão numa coreografia rebuscada que nossos corpos
conheciam desde a criação do mundo.
Dançamos durante horas, envolvidos pela melodia apaixonante dos violinos
e bandoneons. Nossos corpos pulsavam em sintonia com o ritmo passional do
tango, numa exaltação de desejo e de prazer. Éramos o único par no salão, os
outros casais formavam uma roda, contemplando nossas evoluções. Aos poucos
foram aderindo à dança, até que o salão ficou repleto. Sol levou-me para seu
camarim, olhou-me no fundo dos olhos e disse com sua voz rouca: ─ Por que demoraste tanto? Venho aqui todos os dias à
tua procura. ─ Hoje você me
encontrou ─ beijei sua boca
rubra, primeiro como quem prova uma fruta exótica, depois com a intensidade de
uma paixão avassaladora.
Ficamos dias e noites num idílio sem trégua, a vida suspensa, envoltos
na única realidade de um desejo sem medida seguido de um arrebatador prazer que
reacendia um desejo maior ainda.
Uma tarde acordei sozinho num aposento vazio. Sol ocultara-se. Chamei
por ela, gritei seu nome, revirei as
gavetas. Sentei-me na cama, que conservava as marcas da nossa paixão, ainda
aturdido com aquela loucura, quando bateram na porta. ─ És o Sr. Pedro Faria? ─ Respondi sim com um gesto. O policial afastou-se
deixando Cleonice se aproximar ─ vista a roupa,
querido, vamos para casa.
*Ildeu Geraldo de Araújo é mineiro e descobriu na escrita uma nova fonte de realização e alegria. Conheça mais textos do Autor no blog www.contosefolhetins.com.br
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Belo conto. A descrição das cenas nos leva ao local. Gostei! Parabéns ao autor!
ResponderExcluirEsse conto para lá de vigarista, faz com que estejamos junto no bailar sensual e traiçoeiro da trama! Me deu dó de Cleonice... Parabéns Ildeu Geraldo!!
ResponderExcluirFinal surpreendente! Parabéns, Ildeu!
ResponderExcluirExcelente conto, parece que estamos vendo o casal a dançar. Mas coitada da Cleonice! Quanto ao autor, aplausos, Ildeu!
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