Acontecia
a Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP,
evento de considerável repercussão realizado todo ano na cidade. Escritores de
prosa e verso, editores, jornalistas e críticos especializados, apreciadores de
literatura e curiosos circulavam pelas ruas, com seus semblantes mal
disfarçados de indiferença, à procura de câmeras e holofotes nacionais e (mais
desejáveis) internacionais.
Naquela
noite, todos aguardavam a palestra do premiado romancista Ronaldo Sérgio
Botelho, autor de cinco Best Sellers, traduzidos para mais de vinte idiomas e vendidos no mundo inteiro,
praticamente. Era também apresentador de um programa televisivo sobre cultura,
de boa audiência. Mas deu-se o horário marcado e ele não chegou. Os
organizadores tentaram fazer contato, esperaram por mais algum tempo e nada;
Ronaldo Sérgio Botelho não compareceu. O que teria acontecido?
A cena
era apavorante! Fotos do cadáver e do local do crime foram fartamente
divulgadas nos jornais e internet. Ronaldo estava caído no chão do quarto da
pousada em que se hospedara, de braços abertos e levantados, sem camisa, com
vários hematomas no rosto e uma tesoura marcada com suas iniciais fincada no
peito, vermelha de sangue! Jornalistas tiraram fotos de tudo, os detetives não conseguiram
conter sua sanha. Sobre a mesinha, apenas uma xícara suja de café.
Formou-se um rebuliço na cidade,
rompendo seus limites imediatamente e se alastrando por todo o mundo. Um
assassinato na FLIP! Mataram o escritor Ronaldo Sérgio Botelho! Quem teria
cometido aquele absurdo? Outros escritores, sob gestos e feições de tristeza e
indignação, despiam seus pensamentos no secreto da consciência, para exercerem
a vileza humana na mais liberta plenitude: uma cronista do público adolescente,
com a mesma “espirituosidade” percebida em suas narrativas, poluiu assim o seu
silêncio: “espelho, espelho meu, eu sou a melhor e sem precisar de maçã
envenenada”; enquanto um famoso romancista repórter pensava: “o prêmio Sapoti
do próximo ano será meu”. E outro: “a Editora Subjetiva estava na dúvida entre
mim e ele para escrever um tema da coleção Plenas Virtudes; pois a vaga é
minha”. O fato é que muitos de seus colegas de ofício sentiam-se livres de um
estorvo; a fama de Ronaldo Sérgio Botelho impedia maiores e novos destaques.
Trocas de acusações e desconfianças mútuas se disseminaram no meio literário.
O evento
terminou e as investigações permaneceram por mais dois meses, até que uma
novidade deflagrou-se na imprensa: o assassino do escritor havia confessado
espontaneamente o crime. Tratava-se de Jerônimo da Silva, o secretário de
Ronaldo. Eis as declarações que ele deu a polícia e jornais:
–
Trabalho há muitos anos pro seu
Ronaldo. Comecei como motorista, depois fui promovido a secretário particular.
Ele descobriu que, mesmo com apenas o ensino médio incompleto, eu tinha
facilidade no escrever e me propôs que lhe desse meus escritos. Como nunca
havia pensado em ser escritor, apesar de gostar de ler e inventar estórias
desde moleque, aceitei, já que me pagava muito bem por isto. Com a fama que
tinha, graças ao programa de TV, as coisas seriam mais fáceis pra ele. E me
emprestou várias obras, sempre me arrumava um livro novo. Aí, passei a tomar
mais gosto pela coisa e quando via críticas positivas sobre alguma estória
minha, eu me entusiasmava muito. Com o passar do tempo, comecei a querer assinar meus próprios romances. Quando
falei desta vontade pra ele, me chamou de ingrato, de desonesto e tudo mais de
ruim. Reclamou da escola cara que pagava pra meus filhos e de um tanto de
outros favores que me fazia. Aí, resolvi ficar quieto e continuar escrevendo em
nome dele. Foi então que descobri que o maldito tinha tirado a pureza da minha
filha de doze anos e abusava da pobrezinha havia um tempão. Ele já estava na FLIP, quando minha mulher me
contou essa história nojenta. A garota criou coragem e confessou tudo. Aí, eu
me endoidei. Sabia onde estava hospedado e corri pra lá. Fui eu mesmo que
escolhi a pousada num bairro mais afastado, mais deserto, porque ele preferia
assim. Entrei sem ninguém notar, bati na porta do quarto, dizendo ser o copeiro
e quando abriu, soquei demais a cara do desgraçado, disse que só não o mataria
porque não queria ir pra cadeia, mas contaria a verdade a todo mundo, que era
um estuprador pedófilo e que eu escrevia os romances, porque ele não sabia
escrever porra nenhuma. Estava ainda sem camisa, ainda se vestia pra sair. Foi
então que levei um susto com um jato de café quente que o amaldiçoado me jogou
na cara e me distraí. O doido veio apontando pra mim a tesoura que sempre
levava nas viagens, pra fazer recortes de matérias que por acaso encontrasse
sobre ele; mania de gente vaidosa. Estava totalmente descontrolado, me dizendo
que até suportaria a condenação por sua fraqueza de macho, mas jamais suportaria
ser desmascarado e presenciar meu sucesso como escritor, preferia ser preso por
homicídio. Tentei tomar a tesoura dele, nós caímos no chão e como sou mais
forte, consegui virar a ponta em direção ao seu peito. Eu estava cego de ódio!
E aconteceu o que todos sabem. Fiquei apavorado! Só pensei em fugir dali
imediatamente. E saí pela janela.
O
advogado de Jerônimo alegou legítima defesa no tribunal, mas de nada adiantou;
ele foi condenado a muitos anos de
prisão. Uma editora sanguessuga até se ofereceu para publicar um romance que
poderia escrever enquanto cumpria pena, mas não aceitou. Quanto aos seus livros
com a falsa autoria de Ronaldo Sérgio Botelho, foram retirados das prateleiras
de livrarias e bibliotecas do mundo inteiro e considerados pela sábia crítica
especializada, que tanto os elogiara anteriormente, como abjetos lixos
literários.
Texto publicado com a gentil permissão do autor.
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Quantos ghost writers não gostariam de fazer a mesma coisa, não é? Excelente conto, desfecho surpreendente, valeu a leitura.
ResponderExcluirMuito obrigado, Helena. É uma honra estar aqui. Muito obrigado, Lu Narbot. Que bom que gostou.
ResponderExcluirParabéns Marco Aurelio, fiquei aflita durante a leitura e obrigada por enriquecer nosso cantinho!
ResponderExcluirUm conto muito bem urdido! Parabéns!
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