Por Michele Calliari Marchese
Um bom causo se começa
na bodega.
Era o que sempre falava o compadre Rui.
Não acreditava que bons causos se contam do
nada, de dentro de casa ou simplesmente da cabeça. Tinha que começar na bodega.
Diferentemente do que pensava seu amigo Olavo, escritor e contador de causos
que dizia que qualquer tipo de causo, seja ele bom ou ruim, começava no dia a
dia e no pensamento; bastava-lhe pouco para que escrevesse qualquer coisa.
O compadre Rui acabava-se de rir com tanta
barbaridade que o amigo contava e dizia que era ali, na mesa do bar que se
tinha inspiração para lembrar-se de passados já esquecidos e que aquilo dava o
caldo para um conto bom.
O Olavo ficou enfezado e pediu então ao compadre
que contasse um causo naquele momento e imediatamente.
“Só depois de dois
dedinhos de cachaça.” Disse o compadre com um sorriso sarcástico nos lábios.
Vários dedinhos depois, quando a conversa já
versava sobre a dita plantação do Fioravante e de sua excomunhão na frente de
todo mundo que o compadre Rui teve um estalo, de língua e de pensamento. Pediu
ao Olavo uns minutinhos para desanuviar a mente e que logo em seguida contaria
um causo dos bons, daqueles que se começa numa bodega.
O escritor se empertigou todo para ouvir, mas o
dono do estabelecimento precisava fechar por que no dia seguinte seria o
domingo de Páscoa e ele queria acordar cedo para a Missa.
O Rui prometeu que contaria em uma próxima
oportunidade o tal do “bom causo de bodega”.
O compadre Rui foi para casa — meio torto em
cima do seu cavalo — e o Olavo ainda ficou uns bons minutos em frente à bodega
fechada, pensando e matutando e por fim decidiu que a conversa que tinham tido
é que daria uma boa história. Uma história sobre um causo que deveria ser bom
porque tinha nascido ali.
Intempestivamente escreveu e passou a noite
acordado escrevendo, apagando, amassando folhas e tendo a ansiedade a lhe ditar
as palavras. Pronto. Faltava-lhe um título e este tinha vindo logo no começo
daquela conversa com o compadre: “Um bom causo se começa na bodega”. Estava
resolvido. Confiante com a obra guardou os rascunhos no bolso da camisa suada e
foi dormir, mas a esposa já tinha se levantado para a Missa e exigia que o
Olavo criasse vergonha na cara e fosse tomar banho que não tardariam em sair.
O Olavo — meio bêbado — jogou a camisa no chão
do banheiro, fez tudo o que precisava fazer e saiu com a mulher. Na volta, ela
pegou as roupas que estavam no chão, gritou alguns impropérios ao marido que já
dormia no sofá da sala com sapato e chapéu e foi cuidar da casa e das roupas
sujas.
Os dias passaram e os compadres deveriam se
encontrar na bodega para jogar “tri sete” naquele dia. O Olavo fez questão de
vestir a mesma camisa porque sabia que os rascunhos estavam bem guardados no
bolso e sequer percebeu que a camisa estava cheirosa e passada e tampouco se
lembrava da história, pois que ela havia sido concebida na bodega e sob os
efeitos da noite mal dormida e dos martelinhos tomados durante a discussão.
Lembraria-se da história assim que a lesse. Era um conto bom, disso se
lembrava.
Pois apareceu o compadre Rui, todo afobado a
arrastar cadeiras e desculpando-se pelo atraso dele no jogo.
Quem começou a conversa foi o Olavo, que lhe
perguntou à queima roupa onde estava aquela história do último encontro, e o compadre
respondeu que lembrava vagamente do que tinha para contar naquela noite e era
mais ou menos assim: “Uma história sobre um causo que deveria ser bom porque
tinha nascido ali, e tinha até título: Um bom causo se começa na bodega.”
O Olavo no instante em que chamava o compadre de
plagiador tirava do bolso da camisa vários papeizinhos rasgados e sem nada
escrito e ia depositando-os em cima da mesa com os olhos incrédulos diante da
morte do conto.
O compadre ficou nervoso, porque “plagiador” era
uma palavra inexistente no seu vocabulário e com certeza significava alguma
afronta, pois que tinha sido dita aos gritos. Partiu para cima do Olavo e a
briga foi feia.
Quem serenou os ânimos foi o dono do boteco que
resolveu as coisas com um facão em riste. Deu de graça um copo de cachaça para
cada um e mandou fazerem as pazes. “Onde já se viu gente que é compadre ficar
brigando por bobagens.”
Depois das pazes o Olavo e o compadre Rui
seguiram bebendo e conversando sobre a morte do marido da Dona Silvia até que o
Rui falou: “Esse é um tipo de causo dos bons, daqueles que nascem na bodega.” E
o Olavo tomou todo o conteúdo do copo de um gole só. Desculparia essa afronta, mas
só naquele dia.
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Ainda bem que teve um final feliz! E virou mais um bom 'causo.'
ResponderExcluirPois não é, comadre Michele, assim é que nasce um causo: na botica, na bodega, na patente, ao pé de um muro e por aí vai. Difícil não é ter a idéia, difícil é o parto no papel he he he mas sem ser masoquista: gostosa é essa dor de parir um causo, e quando se olha o causo parido, tamanha é a alegria que nem se imagina parar e o próximo já está a caminho. Uma idéia não-parida é um bichinho que fica cavando no côco até encontrar um buraco por onde escapulir para, mais tarde, colocar 'ovinhos' na cabeça do leitor. Assim é um causo bom, não é verdade? E eu gostei por demais deste causo aqui seu, vice?! Amei este causo parido de parto mais que natural. Beijos, até!
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