— Mãe, e as luzinhas?
Ela lembrou. Que droga. Estavam tão perto do
natal, alguns dias apenas. Quase escapara este ano, mas não. E, da forma como
foi abordada, sem desculpas mais a lhe dar, aquiesceu.
— Vamos lá no quartinho procurar.
A mocinha, numa animação pouco habitual, seguiu
a mãe até o quarto cuja poeira de décadas cobria tudo como um véu sagrado. Um
dia, sim, um dia teria que encarar aquele depósito de recordações e enfrentar
os sacos de lixo que as aguardavam, silenciosos, na lavanderia. Muita coisa
velha, quebrada, imprestável, cheia de lembrança. Energia estagnada, diziam;
assim que começasse o ano novo, com certeza encararia uma semana de faxina.
Exatamente como não fizera no ano passado, e no ano retrasado, e nos últimos anos
de sua vida.
Abriu a caixa. Nem se lembrava mais de que
existia uma caixa com enfeites de natal. Papai Noel, sinos, bolas prateadas,
fitas douradas, falsos galhos de pinheiro, muito vermelho e muito verde juntos.
E um grande rolo de fio, no qual pequenas luzes pendiam, desmaiadas.
— Luzinhas! Vamos ver se funcionam, mãe?
E com as mãos encardidas de pó lá vai a moça,
cheia de expectativa, colocar o rolo de fio verde na eletricidade. Mudou o
padrão da tomada, assim como da família. Sai-se em busca de um adaptador,
exatamente como na vida. É importante que as coisas funcionem, num ou noutro
padrão.
— Não acende...
— Devem estar queimadas, depois
de tantos anos.
Mexe aqui, ajeita ali, e eis que as luzinhas
começam a piscar. Verdes, intermitentes, desanimadas como uma alegria falsa,
mas não se pode negar que possuem um efeito hipnótico. A filha sai em busca de
novos enfeites, mas a mãe fica lá, como que paralisada, com a luz de pequenos
pontos verdes refletida em suas pupilas cansadas.
Lembrou-se de quando haviam comprado aquelas
luzinhas. Na verdade, a cada ano inventavam novos enfeites para que os filhos
pudessem ajudar na montagem de árvores, iluminação, guirlandas. Claro que, no
dia de reis, ela desmontava todo o cenário sozinha, mas dava gosto ver as crianças
envolvidas na expectativa de papais noéis, amigos secretos, jantares
caprichados, gente reunida. A casa era o ponto de encontro, valia a pena
complementar com um pouco mais de calor.
Não conseguia se lembrar do último natal em que
tudo havia sido como antes. Uma sequência de recordações fora de ordem
cronológica passou pela sua cabeça: quando, grávida do segundo filho, guardaram
a surpresa para contar à família na hora da troca de presentes. Quando o avô
adoecera, quando a avó se fora, quando o filho maior ficou para o natal mas
estreou seu primeiro réveillon longe das suas asas, quando a alegria era tanta
que ficava difícil imaginar outra forma de se finalizar um ano, quando o
desânimo era tanto que ficava difícil imaginar como fazer para dar conta de finalizar
o ano da mesma forma...
Só sabia que, um dia, estavam longe; a família
era outra, as reuniões escassearam, os presentes minguaram, os sorrisos
passaram a ser falsamente desenhados como uma maquiagem.
— Mãe, vamos colocar naquela arvorezinha de madeira?
Sim, era um cenário, uma peça de teatro que um
dia iria terminar. Até que a morte nos separe? Não, a morte de fato nos une; o
que nos separa é sempre a vida.
A impressão é que tudo aquilo cheirava a mofo.
Quando foi que tomaram a decisão? Ele por comodismo, já que era mesmo muito
mais difícil recomeçar e redescobrir o que um dia os uniu, do que deixar que o
tempo se encarregasse de arrumar tudo; ela por irresponsabilidade, pois via ali
o começo de uma vida nova — e as novidades a atraíam como a luz atrai as
mariposas. Iria viver um dia depois do outro, concordava que o tempo se
encarregaria de arrumar tudo.
O tempo se encarregou mesmo. Encarregou-se de
carregar as últimas esperanças dele para o bueiro das causas perdidas; e se
encarregou também de transformar a vida nova que ela sonhava em uma vida
antiga, cheia de cacos, rugas e incertezas.
Mais um natal. Mais um ano novo, igual a tantos.
De novo, só as luzinhas velhas, ressuscitadas. O que mais poderia ressuscitar?
— Mãe, estou de férias, vamos ao cinema amanhã à
tarde?
— Amanhã não posso. Eu e seu pai vamos assinar o divórcio.
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Muito obrigada, Vany Grizante, por sua
participação tão especial em nosso Blog! Aproveitamos a data para desejar a todos os nossos
leitores e convidados um Feliz Natal e um Ano Novo repleto de criatividade e
boas histórias para contar. Lembramos ainda que a rodada de dezembro se encerrará
junto com o ano: dia 31 teremos outra convidada especial, prestigie. Acompanhe nossas publicações e não deixe de
comentar, prezamos muito a sua participação. Este trabalho é feito com zelo,
carinho e é dedicado a todos aqueles que amam a arte de contar.
Boas Festas,
Helena e
Michele.
Foto: HFrenzel
Lindo conto de Vany Grizante, embora triste. Mas reflete a realidade dos dias atuais, quando famílias se desmancham e, ao fazê-lo, deixam esta tristeza que cola na alma como grude. Entretanto, melhor o desmanche que a hipocrisia de manter aparências ou o comodismo de deixar tudo como está. Vany, você nos deu em que pensar!
ResponderExcluirUma narrativa realista. Muito obrigada, Vany, por iluminar nosso espaço com LUZINHAS tão especiais. É uma honra ter você por aqui. Um abraço fraterno, tudo de bom.
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