Até que a tarefa de observação não
esteve ruim hoje, apesar daquela casa da esquina, o sobrado onde morou o doutor
Pérsio, não me parecer local adequado. Mas tem a escola. Sábado passado vi uma
mulher entrando lá com dois deles. Pelo jeito me pareceu ser a zeladora, ou
mulher do zelador, sei lá. O chato é o velhinho do prédio da frente, fica
varrendo a calçada naquele descanso de não ter mais fim, só pra não ficar sem
nada pra fazer. É, custa nada tentar hoje mesmo. O negócio é dar um jeito de
azeitar o bicho, se não me engano tem mais de cinco dias que nem pego nele.
Compra boa foi essa, uma mixaria, e ainda com duas caixas cheinhas! O que é a
tecnologia, hein! Antigamente, tinha jeito não, era todo aquele estrondo, e a
gente tinha que correr pra outras bandas se quisesse curtir um negócio desses
sem perigo de ser pego no flagra. A Rita falou que ia dar uma chegadinha lá na
Zilá, depois da janta, horário melhor não tem. Ah! Não vejo a hora!
O problema é que um daqueles da
mulher da escola me deu a impressão de ser bem arisco, melhor mesmo deve ser o
outro, o da casa da esquina. Atravesso bem pro lado do ponto de ônibus, e de lá
dá pra ver eles direitinho. No máximo, uns quatro, cinco metros, não pode é
aparecer aquela moreninha do outro dia, com o namoradinho dela. Ficaram se
esfregando um tempão, logo ali pertinho, no muro de pedra. Nesse caso a coisa
fica mais difícil. Vamos ver! Só não posso é deixar ele onde está, outro dia
mesmo a Rita perguntou que caixa era aquela. Negócio de um colega lá do
trabalho, amor. A danada querendo xeretar. Vez em quando dá umas incertas na
garagem, preciso tomar cuidado. Isso é coisa do Coutinho, amor, falei. Que
Coutinho? Ora que Coutinho, Rita! Aquele da festa de quinze anos da filha da
Eronildes, tu não lembra? Um careca, fiscal da Receita Federal. Sacana essa
minha mulher! Balança a cabeça, assim como quem se lembra, mas é só eu virar as
costas e lá vai ela xeretar de novo. Tenho é que mudar o bagulho de lugar.
Qualquer hora, olha ela desembrulhando, e aí a coisa vai ficar feia. Como é que
eu vou explicar? Melhor desentocar de lá, camuflar em um outro ponto, fora da
garagem, mas onde? Mulher esperta está ali, mas não troco ela por nenhuma, isso
eu não faço mesmo, nem que a vaca tussa! Só se ela vacilar, é lógico, eu até que
tenho andado direitinho com ela, pianinho mesmo, posso bobear não, a malandra
parece até que sente o cheiro de outra mulher. Mas também já lá se vão o quê?
Setembro agora faz o quê? Mais de nove anos que estamos nessa, juntinhos, pro
que der e vier. Tenho do que me queixar, não. Com aquela tal de Marli, do
churrasco, é que não posso bobear, chegou até a se debruçar num exagero de
pegar cerveja naquela tina do gelo, mais pra se exibir, a peitaria pulando fora
da camiseta. Sacana! Mas sei que o Borges é que está beliscando aquilo, o
safado não me engana. Ano que vem emplaco meus cinqüenta e oito, começar do
zero novamente é que não dá, a essa altura do campeonato.
A minha Rita é legal, boa
companheira, me entende direitinho na hora do amorzinho, sabe cuidar de mim,
econômica, dinheiro com ela parece de borracha. Mulher de ouro mesmo! Merece
ser sacaneada, não! Quando a gente começou a se entender, vi de cara que era
pegar ou largar, tinha urubu só rondando a carniça. Lá na vila da mãe dela, era
aquela rapaziada assim de shortinho de play boy, sentada na calçada, exibindo
as coxas de atleta, coçando o saco, de olho na moreninha da casa quatro, a
minha Rita. Foi preciso eu começar a fazer cara de poucos amigos, não
cumprimentar. Ihhh, Fofinho, você parece que faz pouco deles! É tudo rapaz
direito, fazendo faculdade! Tá! Eu que bobeie! Se não desse uma de dono do
terreiro, dançava mesmo! Bom, quase sete horas, não posso bobear, tenho que dar
uma de sonso, deixar que ela diga que vai dar um pulinho na Zilá. Aí então dou
uns cinco, dez minutinhos, e me mando pro lado da ladeirinha. Quando aquelas
duas pegam de papo furado, bota hora nisso, ainda mais agora que a Zilá recebeu
uns negócios dos Estados Unidos, daquela prima que mora lá, uns filmes, um
montão de fotos e coisa e tal. A Rita me falou, queria que eu fosse com ela só
pra dar uma espiada, tomar um cafezinho. Qualquer hora, amor, qualquer hora! Dá
um abraço nela que eu mandei, vou ficar por aqui mesmo, vão passar uma série do
Ademir da Guia, os golaços dele no Palmeiras..., sei que é coisa da antiga, mas
o garoto jogava um bolão, você era garota e não ligava. OK, você venceu: batata
frita. Se eu demorar, esquenta aquela carne assada, viu? Tá bom, se preocupa
não. Vai com Deus. Vamos agora ver o bichinho aqui: hmmm,... bem azeitado,
precisa de mais óleo não. Lua bonita que está fazendo.
Boa noite, Seu Raimundo! É! Noite
linda, né? Nenhuma nuvenzinha,.. aquele time só tem salto alto, e sabe o senhor
de uma coisa? É mais fácil a gente trocar de mulher do que de time! Verdade,
sabe mais? Quando eu era garoto, meu pai vivo, flamenguista doente, sabe como é
que é. Cinco irmãos, mais eu. Todo mundo flamenguista, só eu Botafogo. Não vou
mudar casaca agora, depois de velho. O quê? O Vasco? Leva a mal não, Seu
Raimundo, conta outra! Aquele time de bacalhau? Pode crer. Está certo, a gente
se vê, vou só ali na esquina, no boteco do Eduardo, o meu isqueiro está pifado.
Não, não, se preocupa não. É bom pra espraiar um pouquinho, a noite está que é
uma gostosura, olha só! A Rita? Deu uma saidinha, daqui a pouco está aí. Uma
boa noite pro senhor, Seu Raimundo, e...ah, esqueci, e a sua filha, passou lá
no vestibular? Só semana que vem? Diz pra garota meter as caras mesmo, porque
pra quem tem estudo a coisa já está braba, que dirá então se não estudar! A
gente se vê. Boa noite, recomendações à patroa. Agora vamos nós. Um deles está
dando sinal de vida, ouvi o maligno daqui, tomara que seja algum lá da escola.
Ali é mais claro. Que tesão sentir ele aqui no bolso da bermuda. Caminhar mais
rápido, de repente, nunca se sabe, passa alguma patrulha, coisa rara por aqui,
não iam querer me parar, cara de vagabundo não tenho. Mas não é bom brincar com
o azar. Parece que vai esfriar, o que está demais é esse cheirinho, não sei que
flor é essa, tenho que perguntar à Rita, mas como cheira gostoso! Bom demais, e
engraçado é que é só de noite. São essas aí, branquinhas, um perfumezinho tão
doce. Nem sinal daqueles dois namorados, tomara que vão se apalpar longe daqui,
pelo menos esta noite. Lá está o diabo do bicho, é ele mesmo, já me viu, essa
raça não é de fazer escândalo, só se a gente se aproximar demais.
Daqui já está bom. Não, uns dois
passos mais, melhor assim, agora não tem erro não, safado! Ninguém à vista,
janela do sobrado apagada, sai pra lá, gatinho, não é você que eu quero. Te
prepara, condenado, chegou tua hora, fica assim mesmo, só olhando pra mim. Tira
a minha fotografia, tira! Isso, não se mexa agora! O primeiro disparo tira um
fino da grade do portão e faz aquele teeiiinnnc ressoante do metal, mas os
outros dois pegam bem no meio da testa do encapetado, que não solta um grito
sequer, só um rosnado meio rouco. Isso, estrebucha, que estou saindo de
fininho! O negócio é papa fina mesmo, totalmente silencioso, um barulhinho de
nada, ninguém apareceu, nenhum outro demônio latiu. Hasta la vista, baby, como
diz aquele filme.
Voltar pra casa, que a carne assada
da Rita deve estar uma maravilha. E por falar em carne, a outra, a da própria
dona da casa, até que me cairia bem esta noite, estou estourando de felicidade.
Mais um encapetado que despacho. Nem tremer o bicho tremeu. Com este de agora,
se não me falha a memória, já são pra mais de vinte, contando aqueles lá do
Engenho Novo. Cruz credo, amor, sabe o babado que está rolando aí pela rua? Diz
que um cachorro do vigia lá da escola amanheceu com dois buracos de bala na
cabeça. Mortinho, tadinho! Está rindo de que, Fofinho? Ah,.. com dois buracos
na cabeça, claro que tinha que estar mortinho, né, Rita? Algum ladrão, na certa
quis pular o muro, o bicho veio e o cara meteu o dedo, bandidão não brinca em
serviço não, filha! Ladrão nada, filho, diz que o portão estava com corrente e
cadeado, que ninguém mexeu em nada, acredita? Estou falando sério, benzinho,
quase toda semana matam um cachorro a tiro aqui perto, e o pior é que ninguém
ouve nada! Coisa esquisita. Dá uma pena! Diz que o sangue empapou todo o
cimento da entrada da escola..., estou brincando não, bota essa mão boba pra
lá, deixa de safadeza! Tão carente esse meu homem! Rita, ó, minha delícia de
mulher, chega pra cá, chega! Estou tão feliz esta manhã, Ritinha, vem,...vem,
neguinha..., esquece essa história de cachorro morto, minha cachorrinha!
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Olá, Heitor! Também fiquei 'feliz' - para fazer alusão ao título do conto - com outra participação sua aqui no Sem Vergonha de Contar. Trata-se de um conto 'forte' porque retrata uma felicidade mais 'real' do que muitos querem enxergar. Mas a função do escritor é essa: mostrar o mundo como ele o vê, ou como ele é (talvez), embora muitos não queiram aceitar. Há muitos anos vivemos em Estado de Emergência no mundo todo e por isso mesmo essa grande desilusão no ser humano. Um Feliz 2013 para você, sucesso em sua carreira e não deixe de nos informar seus lançamentos. Um abraço fraterno, Helena Frenzel.
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