terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O Presente

Por Soraya Souto

Depois dos filhos criados e casados, e vendo a velhice chegar, Tio Zé e Tia Fia passavam os dias entre os trabalhos na pequena fazenda, e as poucas visitas aos vizinhos.

Há tempos a filha mais velha tinha se mudado com o marido para o nordeste, e o filho caçula, temporão que Deus mandou, trabalhava na cidade grande, e vinha uma vez por mês. Nesses dias, trazia sempre um agrado, alguma novidade da cidade para facilitar a vida da mãe, ou algo que alegrasse a solitária vida dos pais.

Quando soube que a energia elétrica rural enfim tinha chegado por lá, gastou todo o seu salário no melhor de todos os presentes: uma televisão novinha, que depositou orgulhosamente na mesa da pequena sala da casa. O mais difícil foi instalar a antena no telhado, com subidas e descidas sem fim, até acertar a imagem. Quando terminou, abraçou os pais e partiu apressado, a tempo de pegar a condução de volta para a cidade.

Nos dias que se seguiram, os vizinhos pouco viram o velho casal. As visitas noturnas já não aconteciam, e na quermesse da igreja daquele mês ninguém provou os deliciosos biscoitos da Tia Fia, na barraca das quitandas.

Essas mudanças seriam de preocupar, mas o filho do Senhor Onofre, Zequinha, garoto esperto e falante, tinha tranquilizado a todos, ao contar que via os tios sempre, ao voltar da escola. “É verdade, gente, eu vejo eles sentados lá na frente da casa, e não estão doentes não”, explicou.

Mas com o passar do tempo, um fato estranho lhe chamou a atenção: notou que os dois velhos se sentavam de frente para a porta da casa, e costas para a estrada, e por isso nem viam quando ele passava. Preocupado, um dia tentou chamá-los do portão, mas não foi ouvido pelo casal, distraído com algo que acontecia na sala.

Até que em determinado dia resolveu abrir o portão da fazenda do Tio Zé e, sem ser convidado, ir ter com eles, para um pouco de prosa.

Estavam sentados a uma grande distância da porta da casa, no jardim, e assistiam curiosos um programa qualquer que passava na televisão, ligada no fundo da sala. Tia Fia se esforçava muito para enxergar a imagem, “talvez por causa da distância”, pensou o garoto.

Bênção meus tios! Por que é que estão assistindo a televisão assim, de tão longe?”

Deus o abençõe, meu filho!”

E puxando o braço do sobrinho, Tio Zé apontou o aparelho na sala e explicou: “nosso filho deu essa máquina, e falou onde apertava para ligar e desligar...”

Tá certo, tio”

E foi um presente danado de bom esse!”

Foi mesmo, senhor”

Fez uma pausa, para depois continuar em voz baixa:

Mas a máquina fala muito alto, meu sobrinho, então eu e a Fia temos que sentar aqui fora, longe desses gritos...”

Zequinha então compreendeu tudo. Os tios não tinham idéia de como controlar o volume do aparelho, mas, encantados com a novidade, não queriam deixar de assistir um dia que fosse. De imediato, entrou na sala e mostrou o que fazer aos tios, contendo o riso para não envergonhá-los. Aproveitou também para mostrar outras utilidades dos controles, tendo paciência para repetir todas as vezes que o tio pedia. Na cozinha, Tia Fia preparou um cafezinho novo, e o biscoito frito que o sobrinho tanto gostava.

Depois disso, já acostumados com o presente do filho, as noites na fazenda se tornaram mais alegres. E a cada vez que o filho retornava, Tia Fia tinha uma infinidade de assuntos para comentar: coisas que tinha visto nas propagandas e programas, os filmes de amor que assistia durante as tardes, e, principalmente, as imagens dos lugares que nunca tinha visitado, mas que povoavam seus sonhos desde a juventude. Tio Zé ouvia todos aqueles relatos em silêncio, muito quieto, cauteloso como sempre tinha sido, diante daquelas novidades da cidade.

E quando chegava a noite, os vizinhos sempre apareciam, para assistir o capítulo da novela das sete...




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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A triste história do caboclo João


Por Michele Calliari Marchese
Todo mundo sabe que os primeiros moradores da Campina da Cascavel foram os caboclos. Desbravaram nossa linda terra e foram abortados quando do início da colonização acontecida após 1917. Uns eram agricultores, enquanto outros criavam animais e assim sobreviviam com parcos recursos, todos analfabetos e sem documentação sobre as terras que acabaram sendo devolutas ao Estado e posteriormente vendidas aos colonizadores assim que aconteceu o Tratado de Divisas em 1917, após a Guerra do Contestado.
Essa é a história do caboclo João, que tinha um pedaço de terra muito linda e produtiva, uma casa com chão de terra batido e uma família de dar gosto. Viviam felizes e se amavam. Todos se ajudavam e, nas noites de lua cheia, se sentavam ao redor do avô para ouvi-lo contar causos de tesouros. Foi no inverno que aconteceu de chegarem gentes brancas por perto de sua terra. Eles construíram casa, moinho e tinham mulas. Plantavam sementes desconhecidas e fizeram um cercado para as galinhas. Coisas que o João sequer sabia que existiam, e se assustou com a brancura daquelas crianças, que decerto estavam desnutridas; se assustou com a cor dos cabelos de um menino que deveria ter no máximo 4 anos. Eram brancos como as nuvens.
Benzeu-se e correu contar a novidade para a família, que tratou de se esconder dentro de casa, por medo de ser aparição de alma penada.
 Com a chegada dessas pessoas, muitos conhecidos do João perderam tudo o que tinham por causo de um documento, que dizia –e eles tinham que acreditar, pois não sabiam ler nem escrever –que aquela terra era deles. E mostravam com os dedos os seus próprios nomes escritos nos documentos e diziam que tinham comprado aquele chão e que aqueles que estavam lá não deveriam estar, mas que por uma misericórdia eles deixavam pegar seus pertences para irem-se embora.
Ir para onde?
Pois o João ficou assustadíssimo com a quantidade de amigos seus, compadres entre si, sumirem de uma hora para outra e resolveu agir antes que acontecesse o mesmo com ele. Não tinham a mínima noção do que estava acontecendo, mas sabia em seu íntimo e quando olhava seus filhos, que alguma coisa estava errada. Não culpava aquela gente nova que chegara por ali, decerto tão ignorantes quanto eles. Culpava alguma coisa que ia além da sua compreensão, porque não sabia de colonização alguma, sequer sabia o que “devolutas” significava e não entendia patavina daqueles documentos que eram apresentados a todo o momento.
Resolveu embrenhar-se no mato, o mais distante que o seu corpo pôde ir. Andou um dia inteiro margeando o rio e quando achou o lugar seguro para morar, abriu a mata com um facão de pau de guamirim e não descansou até não ver uma edícula pronta para receber a sua família.
Levou outro dia inteiro para voltar e quando chegou em casa, encontrou uma família exigindo aquele pedaço de chão e a mostrar-lhes documentos ilegíveis e então o João pediu pelo amor de Deus que esperassem levantar a mudança que iriam embora, e o genitor daquela família de migrantes pediu se eles queriam ficar como empregados dele, mas o João que tinha lá no fundo da sua alma o sentimento do orgulho, pensou por um momento e olhou seus filhos e sua esposa e o seu pai que estava encostado no vão da porta com a cabeça baixa.
E foi quando ouviu daquele homem, que se ficassem todos trabalhariam na lida e receberiam alguma ajuda que resolveu de fato ir-se embora dali. Filho pequeno não pode ir para a roça, nem velho e tampouco mulher.
Juntou o que pôde em pedaços de panos velhos, cada um com o que podia carregar e foram embora dali para sempre. Deixando para aqueles migrantes, uma vida inteira de trabalho e aquela casa de amor. Levaram muito tempo para chegar naquela edícula construída no meio do nada e foram margeando o rio para matar a sede e alimentarem-se quando o mais velho dos seus filhos avistou alguma coisa na água e resolveram içar com um galho de árvore.
Ficaram enojados e pesarosos diante daquele corpo já putrefato, conhecido do João, pois era o compadre Batista que ali se apresentava morto pela água, ou por sabe-se lá o quê.
Quando começaram a cavar uma sepultura digna para aquele homem, os filhos gritaram pelo pai, e a cena foi deveras angustiante para aquela família que só tinha o orgulho e a vontade de trabalhar. Eram mais de meia dúzia de corpos boiando no rio, e a mulher do João vomitou. Tinha criança junto. Era a família do Batista.
O velho percebeu em seu íntimo o que aquela cena representava, pois que se tivessem ficado naquelas terras, seria o destino deles também. Lembrou que o Batista brigou feio na comunidade por causa da sua terra. E o João tinha tomado as dores daquele compadre.
Ele levantou –pois estava cavando o túmulo –rolou o corpo de volta para o rio para que seguisse junto com a família que boiava, pegou os pertences, cutucou cada um dos seus, pois que não conseguia falar por causa da emoção e partiram, e nunca mais se soube deles e de seus descendentes.




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domingo, 1 de fevereiro de 2015

A qualidade da escrita pode ter sido ‘a razão’

Por Helena Frenzel


Bons lugares para se encontrar coisas interessantes são sempre os corredores das universidades ou de instituições culturais. Assim encontrei, para distribuição gratuita, um exemplar antigo do jornal Genossenschaftliche Allgemeine, Nr 8/14 (parte do Frankfurter Allgemeine) trazendo na parte de Kultur (pt. cultura) o perfil de Nele Neuhaus (lê-se em pt. /Néle Nóirraus/), escritora bestseller conhecida como ‘a Rowling alemã’. O título do artigo é “Die Deutsche Rowling – Nele Neuhaus – Porträt einer Frau, die alle lesen, aber keiner kennt”, von Bettina Weiguny (pt. A Rowling alemã – Nele Neuhaus – Retrato de uma mulher que todos leem mas que ninguém conhece). Ainda não pude ler nenhum de seus livros, primeiro porque não sou leitora usual de romances policiais e segundo porque só agora a descobri como autora, porém achei a história dela muito inspiradora e por isso a ‘reconto’ aqui, para compartir com meus colegas escritores.

Pois bem, Nele é comparada à Rowling porque após ter lançado vários livros com sucesso na Alemanha escrevendo como Nele Neuhaus, o mais recente ela lançou sob o pseudônimo de Nele Löwenberg, algo parecido com o que fez a Rowling, supostamente para desvincular seus livros policiais de sua mais famosa série: Harry Porter. Na entrevista, Nele afirma que recorreu ao pseudônimo porque o novo livro era um novo gênero e ela não queria misturar as coisas. Ela é uma autora tão bem-sucedida que especialistas afirmam que um ano sem um novo livro dela é um ano ruim para o mercado alemão de livros. Para que tenham uma ideia, passados cinco anos da publicação independente de seu primeiro livro ela já vendeu mais de cinco milhões de exemplares só na Alemanha, tem livros traduzidos para 23 línguas com mais de 700.000 exemplares vendidos no exterior, sem falar que alguns de seus livros já viraram roteiros para séries de TV.

Mas agora vem o mais interessante: como ela conseguiu chegar onde chegou? Aos 20 anos ela casou-se com um rapaz também de 20 e ambos tiveram de dedicar-se integralmente a uma fábrica de carnes (pelo que entendi não se trata de um açougue, estaria mais para o que no Brasil se entende como frigorífico) e isso tomou todo o tempo e a energia do jovem casal. Isso tudo para dizer que, por conta da fábrica e de outras obrigações, ela não encontrava tempo para dedicar-se à escrita, sua paixão, e nem tinha o apoio de ninguém (o próprio marido nunca se interessou em ler sequer uma linha do que ela escrevia, o que doeu muito mais do que a recusa de qualquer editora) e foi nesse momento que a escrita transformou-se em válvula de escape para a dura rotina: todo e qualquer momento livre era usado para escrever e ela conta terem sido esses os melhores momentos que experimentou na época.

Como já era esperado nesta fábula, o primeiro manuscrito foi sumamente rejeitado por todas as editoras para as quais ela o mandara, mas ela não desistiu de acreditar na qualidade do que escrevia e descobriu que com o “Book on Demand” ninguém mais precisava de uma editora para publicar seu trabalho. O primeiro livro ela mesma produziu (capa, layout, estratégia de marketing e distribuição) e mandou imprimir 500 cópias e começou a pôr em prática uma estratégia de divulgação baseada em leituras abertas ao público. Aqui é costume as livrarias e outras instituições darem espaço a autores para lerem seus próprios livros. Assim ela foi de porta-em-porta e conseguiu vender todos os 500 exemplares e logo pode financiar o segundo, no mesmo sistema, para o qual mandou imprimir 1000 exemplares. Chegou uma época em que os clientes iam à fábrica e ao invés de comprar carne compravam seus livros. O terceiro título ela mandou imprimir com 5000 exemplares. Para cada livro ela tirava uns 4 Euros e viu que assim poderia seguir publicando, não fosse uma grande editora de Berlim ter entrado em contato. Em 2009 saiu o quarto livro, agora sob o selo da tal editora, e logo virou bestseller.

Ela mesma diz que não sabe dizer o que aconteceu para que da noite para o dia virasse bestseller e tem certeza de que seu caso não foi o normal, porque no mercado de livros é preciso ter muita sorte para se ganhar um público (maioria das vezes muito mais sorte do que talento, e uma boa estratégia também). E mesmo não tendo ainda lido qualquer de seus livros, e conhecendo um pouco do perfil dos leitores alemães, diria que os livros dela devem ter qualidade sim, pelo menos um mínimo.

Porém, como tudo tem seu preço, o sucesso meteórico lhe trouxe muitos problemas pessoais: problemas de saúde e no casamento, separação, crise. E como na raiz de toda crise está uma oportunidade, Nele voltou-se para o que já havia construído e retomou as rédeas da situação.

Hoje em dia ela vive num outro relacionamento e segue sendo senhora do seu negócio literário, não aceita qualquer proposta e opina em questões de direitos sobre seus livros e de quem pode fazer uso deles para transformá-los em filmes, por exemplo. Ao invés de 80 saraus de leitura por ano, como no início, ela agora mantém apenas 15, e o público aumentou de cerca de 20 pessoas para mais de mil por encontro. Antigamente ela escrevia para sobreviver à rotina, hoje em dia ela tem a escrita como atividade principal, e aproveita as pausas para descansar de escrever e ter novas ideias, e que escreve porque precisa e por conta disso seguirá escrevendo, com sucesso de público ou não.

Pode ser que eu venha a ler seus livros e não goste, mas independente disto esta é uma história de vida que senti uma enorme necessidade de passar adiante. E que ela sirva de inspiração para quem ainda se escora em mil desculpas e se esquiva de correr atrás dos próprios sonhos.

Fonte:
Bettina Weiguny: Die Deutsche Rowling – Nele Neuhaus – Porträt einer Frau, die alle lesen, aber keiner kennt, in Kultur, Genossenschaftliche Allgemeine Nr 8/14, Frankfurter Allgemeine, Página 7.





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