Por Helena Frenzel
Do lugar do motorista, no carro parado no estacionamento, ela observava meio
emburrada o vai-vem tão típico das vésperas de Natal. Não agüentava mais todo
aquele consumismo. Todo ano é a mesma coisa! O clima melancólico, os lembretes
de que muitos não têm sequer o que comer... E as campanhas tilintando: Compre
Baton! Compre Baton! E tudo é sempre coca-cooolaa. Não, não suportava mais
aquilo! Se possível, gostaria de dormir e acordar bem depois de haver baixado a
poeira de todas as festas de fim de ano. Em meio às suas revoltas sazonais,
contra o sistema, uma coisa naquele estacionamento movimentado chamou-lhe a
atenção. Tratava-se de uma menina que, naquele momento, começava a acomodar
suas compras natalinas num pequeno carro, modelo popular. Talvez aquela mocinha
não tivesse mais que 18 anos... Viu quando ela, primeiro, trouxe uma caixa
plástica transparente. Dentro da caixa, várias bolas douradas e outros enfeites
natalinos espremendo-se e concorrendo entre si, esperando ansiosos para saber a
quem tocaria a sorte de ficar com a vista mais legal da janela. Nem adiantou a
briga dos enfeites, pois a menina acomodou a caixa no chão do automóvel, no
banco traseiro, escondendo-a, ou melhor: protegendo-a à sombra do banco do
passageiro. E ela, nossa voyeur, de seu posto, chegou a ouvir os gritos de
decepção e os choros, que em nada faziam recordar os chorinhos musicais
chorados com tanto gosto pelos chorões passados brasileiros. Era mesmo um
berreiro! Irredutível, a menina voltou ao carrinho de compras, agora para
retornar com duas orquídeas, cada uma em cada vaso. “Embora não passem de
parasitas, chame uma orquídea de aproveitadora ou sanguessuga pra você ver
aquilo roxo, chame! Que nada,” pensava nossa voyeur, “chiques do jeito que
essas plantas são e tão delicadas... Se molhar demais, murcham; se molhar de
menos, secam do mesmo jeito! Não entendo as orquídeas, tão belas e tão
temperamentais. Não se fazem mais plantas como antigamente, isso sim! Todas
estragadas em laboratório!”. A menina começou a acomodar as orquídeas no
automóvel.
E nossa observadora chegou a ouvir o choramingar de uma das duas: “Ai,
vai estragar meu visual! Depressa, depressa!”. Chuviscava. Parecendo entender
suas queixas, a menina pôs uma delas sobre o banco da motorista, enquanto
buscava acomodar a outra em algum lugar no banco de trás. Nossa voyeur não
sabia como fizera a menina, pois as orquídeas foram engolidas por aquele
automóvel, por fora tão pequeno e, por dentro, se duvidar, com compartimentos
simulando buracos-negros engolidores de bagagens, ainda que fosse um sumidouro
temporário só durante o deslocamento. Terminada a operação super-cuidadosa, a
menina devolveu o carrinho de compras ao estabelecimento e voltou apressada à
sua nave. Talvez essa pressa última tenha sido só por causa da leve chuva...
Por todo o tempo que observara sua atuação, em nenhum momento nossa espia
percebeu sequer uma ruga de impaciência no rosto da menina. Muito pelo
contrário, a menina moveu-se tão devagar durante o carregamento de seu pequeno
veículo que, caso tivéssemos que ficar ali o dia todo, por certo não nos
entediaríamos com aquela dança mística, quase ritual. Enquanto nossa olheira,
em seu posto, aborrecia-se pensando que todo final de ano era a mesma coisa, a
menina, ao contrário, parecia estar curtindo cada segundo daquelas compras, e
feitas num dia assim tão cinza, chuvoso, ranzinza. O que levou a observadora a
pensar que talvez fosse aquele o primeiro Natal da menina em sua casa nova.
Talvez por isso lhe desse tamanho gosto sair para comprar enfeites, e pagar com
o próprio dinheiro. Quem sabe, estivesse organizando a sua primeira ceia de
Natal... Poderia também estar curtindo o primeiro automóvel, a liberdade, a sua
licença para dirigir, não só veículos, mas também a própria vida, seguindo a
direção que bem lhe parecesse, e sem ter que dar satisfações a ninguém! A
menina entrou no carro, pôs o cinto de segurança. Nesse momento, pela expressão
dela, nossa observadora achou que parecia pensar: “Ôba, a vaga da frente está
livre, nem preciso usar a marcha-ré. Era só ligar o motor, por via das dúvidas
olhar para os lados e depois seguir”. O caminho estava livre. Naturalmente, a
menina o tomou. Êpa, de repente uma freada. Não brusca, claro, para não afetar
o humor das melindrosas passageiras. A observadora notou que a menina arrumava
rapidamente alguma coisa no banco do passageiro, a seu lado. Um colete de
segurança, uma caixa com um circuito de luzes de Natal... Pronto! Agora poderia
seguir. Olhou de novo, por costume de bom motorista, seguiu por menos de dois
metros, sinalizou a mudança de direção e começou a ir-se embora, devagar.
E com ela, a menina, foram-se os murmúrios das bolas douradas. E as
orquídeas, como estrelas de cinema, em limusines, escondidas, iam pondo em dia,
uma para a outra, os últimos lançamentos, coleções e fuxicos do mundo da moda.
Talvez, para as orquídeas, tanto faz se havia ou não uma festa de
confraternização, voltada principalmente ao comércio, à que muitos chamavam de
Natal.
—A peça está em falta! Agora, só ano que vem! Vamos?
Aquela voz grave, o barulho da porta do passageiro se abrindo e em seguida fechando bruscamente, a esperança de que nem tudo seria sempre a mesma coisa, o olhar inquiridor, o sorriso bobo, e nem um anjo..., as mãos frias, a menina indo, o frio lá fora, olhar perdido, o fuxico das orquídeas, o choro das bolas, o vai e vem no estacionamento, e nem um anjo..., a menina sumindo, o frio ali dentro, tudo, tudo aquilo tirando a observadora de seus devaneios e trazendo-a de volta à realidade fria e consumidora daquelas vésperas de Natal...
“Os
sinos soarão no dia de Natal!
Os
sinos soarão no dia de Natal!
Anunciando:...
(?)”
Nota: este texto faz parte do ebook natalino a ser lançado muito em breve no site do Projeto Quintextos.
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Gostei do ritmo, da fluência do conto e mergulhei no carro da menina com as bolas e orquídeas. Por alguns instantes, o frenesi das pessoas foi substituído pela fantasia. Muito bom, Helena!
ResponderExcluirGostei demais de seu conto, Helena, numa linha que explorou muito bem o comportamento humano diante das coisas que interessam diferenciadamente a cada um: de uma lado a menina que estava imbuída do espírito que envolve as pessoas na época de Natal, animada e feliz; do outro a voyer que parece, se deixava tomar por lembranças que a faziam assistir a toda cena, com admiração; e ainda de outro lado, o terceiro que chega ao carro totalmente indiferente a tudo que se passava. Gostei também da suposição da fala dos enfeites e das orquídeas, numa alusão à vida e à fantasia que emprestam aos humanos para que conservem o espírito do Natal. Parabéns!
ResponderExcluirNa oportunidade, deixo os meus votos de um feliz Natal para você, Bê e seu esposo. Boas festas!
De ritmo muito interessante. O colorido das compras de Natal é sensivel ! Muito bom, Helena !
ResponderExcluirAdorei Helena, o fantástico unindo-se ao real, o pensamento daquele que observa sempre com o botão ligado, imerso em pensamentos ambíguos com relação ao que observa e o que traz para si da vida que leva. O parágrafo final foi o "matador" nem um anjo repetindo-se lentamente para que se agrave a falta dele no momento mágico que foi partilhado entre observador e observada. Parabéns. Amei de morte morrida. Beijos
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