sexta-feira, 16 de maio de 2014

ENTREVISTA COM SUZO BIANCO


Quem não arrisca, não petisca!

HELENA FRENZEL: Olá, Suzo. Você sabe que há algum tempo, muito antes do Quintextos vir ao ar, eu havia encontrado na rede uma cópia em PDF de Jailton, O Coveiro Covarde, disponível gratuitamente para baixar. Por ser curiosa a respeito de ebooks gratuitos, baixei e li. Embora o texto tivesse as costumeiras marcas dos iniciantes, e vários erros gramaticais, a história revelou-se muito interessante e li com gosto até o final. Então pensei: "Taí, uma boa história que, com alguns retoques..." E a nossa história teria um ponto final não fosse a minha iniciativa de ter entrado em contato com você e dito o que havia pensado do seu ebook. Então, de lá para cá, descobri que você, além de escrever, também é ilustrador, que já havia escrito e publicado outras narrativas e até convidei-o a enviar uma delas para o Sem Vergonha de Contar, e você me enviou A Cotia Que Se Perdeu. Sim, mas o tempo foi passando e eu continuo sem saber quase nada a seu respeito. Quer me ajudar nesta questão? Pois bem: Quem é Suzo Bianco, o que ele faz? Quando começou a escrever e por quê? Que motivos levaram-no a publicar na rede?

SUZO BIANCO: Olá, Helena. Eu sou ilustrador e artista plástico por vocação, tive educação paterna nessa área desde que me entendo por gente, por isso acabou sendo natural eu me apegar a essa profissão. E também por esse motivo, tudo que envolve imagens e ambientes fantásticos acaba me chamando a atenção até hoje. No caso, livros de RPG no início dos anos 90 (Um jogo de interpretação, onde o mestre narra um conto flexível às ações tomadas pelos jogadores, e esses recebem seus personagens e os interpretam de acordo com as condições impostas; ou pelas regras do jogo ou pela narrativa apresentada.) Nessa época eu me apeguei bastante à prática de ‘mestrar’ histórias para os amigos. Esse hábito acabou me levando a ler muito, para dar conta das regras dos jogos. Com o tempo fui arriscando a criar meus próprios enredos, e isso fez com que eu criasse formas de narrativas longas e consistentes, sem furos e que prendesse a atenção de quem as estava ouvindo e/ou participando. Percebi que eu tinha uma facilidade de criar histórias que despertavam interesse, e que fugia do óbvio e dos clichês. E como se tratava de jogos para adolescentes, como eu na época, os mundos que eu criava e as histórias eram repletas de acontecimentos fantásticos. Porém, eu me preocupava em fazê-las coerentes, de forma que trouxesse o máximo possível da atenção dos jogadores para dentro do que estava sendo contado. Acho que foi nessa época que criei gosto pelo lado criativo da literatura. Passei a ler e a escrever com frequência, e não demorou eu perceber minha deficiência no que dizia respeito à gramática normativa e a tudo que isso implicava. Minha dislexia fora descoberta. Contudo a vontade era, e é, maior que a vergonha (risos). Não sei explicar muito bem isso. Uma vontade incontrolável de pôr as histórias da minha cabeça “no papel” me fizeram escrever meus primeiros contos com propósito de serem lidos somente, não jogados. Infelizmente não sou financeiramente abastado e, para quem quer escrever, isso também é um problemão. Consegui uma bolsa 100% num curso de Letras e o aproveitei da melhor maneira possível, isso me ajudou na escrita, mas na falta de condições para pagar um revisor, ou alguma leitura crítica, decidi que eu teria que encontrar uma forma de ser lido mesmo assim, ainda que meus textos tivessem erros imperceptíveis à minha atenção e prática, eu sabia que eles estavam lá. Tive que tomar uma decisão... Foi quando disponibilizei dois contos gratuitamente na internet e rezei para que, quem os lesse, não me tivesse mágoa e aproveitasse a história mesmo com as certas imprudências de um iniciante nessa mídia. Escrevendo essa resposta para você hoje, acho que foi a coisa mais ‘”idiotamente” certa que fiz quanto ao meu objetivo de ser lido (risos). Ainda pretendo escrever muito, sinto que ainda tenho muita coisa pra contar, e espero evoluir na escrita em todos os sentidos enquanto isso for acontecendo. Bem, o tempo dirá o que vai acontecer...

HELENA FRENZEL: Deus não olha o seu estilo, olha o seu coração”. Li esta frase em algum lugar na Internet, desconheço o autor. Acho que algo semelhante se dá com um leitor sensível. Adorei a sua resposta. Acho importante explicar essas coisas porque ajuda a derrubar ou abalar muitos preconceitos. Eu, diferente da maior parte das pessoas que conheço em certos meios, dou muito mais valor às idéias do que à implementação, que podem ser muitas até. Ainda mais se o candidato a escritor não tem nenhum apoio editorial nem muita oferta cultural, já que no Brasil, por exemplo, museus e bibliotecas são considerados desnecessários até mesmo por quem define os rumos da Educação no país, o que é um absurdo, não? Sim, mas voltando ao nosso tema: há um preconceito muito grande relacionado ao uso da norma culta do Português do Brasil e eu, como alguém que estudou um pouco na área de Lingüística, vejo com bons olhos que pessoas têm se levantado para questionar muitas coisas que antes ninguém ousava tocar, como a existência das variantes lingüísticas e os regionalismos neste Brasil quase continental, e esse é um dos primeiros passos rumo à construção ou descoberta da própria identidade cultural, até mesmo da aceitação da norma culta, do entendimento do porquê ela é imprescindível em vários contextos, mas em Literatura, por ser um território de expressão humana e artística, temos de ter mais liberdade de experimento e criação, já que quase tudo, senão tudo, começa pela Língua. O verbo cria, não? Você fala em dislexia. Engraçado que, ao ler O Coveiro, a relativamente boa construção da história foi o que mais me chamou a atenção e os erros percebidos eu não diria que foram assim tão graves, muito mais denotavam o esforço em transcrever o jeito que as pessoas falam na vida real. Porém, num texto literário o desafio é justamente pôr no papel histórias do dia-a-dia com um toque que as distanciem da linguagem comum. Essa transformação artística é função do escritor, e é o que diferencia cada um, eu diria. Tal transformação é importante, a meu ver, pois é o que torna o texto universal e atemporal. Alguns chamam esse toque de 'estilo', que pode envolver o chamado lirismo natural, já outros o vêem como puro domínio da técnica. Não sei, cada escritor encontra o seu caminho de contar suas histórias, mas ninguém se torna escritor só porque sabe escrever dominando uma ou várias técnicas ou normas, a gente se torna escritor quando tem algo para contar e uma grande necessidade de dar vida a tais histórias, uma necessidade maior do que nós mesmos, que não se deixa ignorar. E essa característica, ou seja: querer contar suas histórias custe o que custar, eu acho que você tem, como outros escritores iniciantes que conheci na rede, os quais procuro apoiar porque é uma pena desperdiçar qualquer talento ou vontade de fazer alguma coisa. E a qualquer iniciante eu só posso aconselhar que siga escrevendo e seguindo sua intuição, lendo bastante, claro, porque leitura, a meu ver, é primordial, e que siga se abrindo a críticas e se aperfeiçoando nas técnicas narrativas. Veja que há lugares em que os escritores geralmente frequentaram cursos especializados na formação de escritores, como nos Estados Unidos, por exemplo. Acho a idéia muito válida, claro, até mesmo pelo tempo que um candidato a escritor possa ganhar ao adquirir num lugar só boa parte do conhecimento que precisa para escrever em um ou vários gêneros. Por outro lado, o molde das escolas pode acabar afastando o espírito inovador, tão desejado na arte. Há lugares em que a crença maior continua sendo a de que escritor é alguém que nasce com talento para essa arte, e que isso nenhuma escola pode ensinar. Acho que pode ganhar mais quem combina os dois modelos, alguém que tenha já uma pré-disposição, o tal talento para a escrita, e não ignore as técnicas mais usuais. Independente de qual modelo alguém escolha seguir, penso que só o escritor verdadeiro persiste no caminho que lhe dita a sua escrita, independente de reconhecimento externo e de quantos 'nãos', na vida, vier a ouvir. É isso: persista! Suzo, obrigada pela breve entrevista (já que acabei falando mais do que você) e sucesso em seus projetos, rapaz!


As ilustrações a seguir são todas de Suzo. Ele me pediu para escolher uma só, mas eu gostei de todas, então...








No próximo post teremos um texto de Suzo Bianco. Aguarde e confira!


Mais sobre Suzo Bianco e seu trabalho você encontra em:
www.suzobianco.blogspot.com.br



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terça-feira, 6 de maio de 2014

Setembro esquecido



Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel e há sérias dúvidas de que tenha realmente acontecido, mas aconteceu. Foi há muito tempo, tanto tempo que não se sabe precisar, mas foi na época em que o Padre Dimas estava começando seus serviços religiosos por aqui.
Conta-se que numa noite de céu estrelado, a Dona Jovilde, junto com o seu marido Alencar viram chegar à Campina um cavaleiro muito estranho. Vinha montado num cavalo branco e trazia consigo um arco, mas que não puderam ver direito do que se tratava, já que estava escuro. O cavaleiro estacou de súbito em frente ao casal e disse numa voz de barítono: “Venho para vencer e quem quiser que venha comigo.” E assim como apareceu, deu a meia volta e retornou de onde estava vindo. A Jovilde e o marido acharam tratar-se de algum louco e continuaram seu passeio alegremente.
Justamente nesse horário da aparição, o Padre Dimas acordou sobressaltado com um sonho que teve a respeito da vinda do tinhoso.
Sonhou que o próprio credo em cruz arrebataria as almas da Campina num estalar de dedos e ainda se riria do pobre Padre Dimas.
Não se sabe o que pesou mais; se o medo do tinhoso ou se o orgulho ferido, mas a verdade é que na Missa de domingo o Padre convocou toda a população para uma nova novena para que as almas não se perdessem e não caíssem na conversa do demo se por uma desventura ele aparecesse.
Ele não apareceu, o Padre deu-se por satisfeito e com o orgulho restituído.
Na semana seguinte a Dona Silvana e as crianças, viram um cavalo vermelho aparecer na Campina. Conta ela que o cavaleiro tinha uma espada na mão, do tipo que jagunço usa e imediatamente mandou o filho mais velho chamar o delegado e ficou tão desconfiada que não escutara as palavras ditas pelo cavaleiro e tampouco vira quando desapareceu. Deu-se conta da gravidade da situação quando chegou o Padre Dimas suando em bicas dizendo estar se sentindo muito mal a ponto de desmaiar. “Deve ser o calor, seu padre.” Disse a Dona Silvana de olho no delegado que chegava ao seu encontro.
Mas a Dona Silvana não pôde contar nada porque aconteceu de chegaram subitamente na Campina mais de 350 jagunços fugidos da Guerra dos Pelados e corriam feitos loucos em seus cavalos pela estrada, levantando pó e trazendo muito desespero. O padre ajoelhou-se ali mesmo, seguido de delegado, da Dona Silvana e das crianças e começaram a rezar e só pararam quando a Campina ficou num silêncio de morte.
“Foi exatamente isso que eu sonhei”. Disse o Padre Dimas já refeito do susto. Com surpresa constatou que não houve gentes feridas, como também, a população incrédula não sabia do que eles estavam falando. Benzeram-se e foram embora psicologicamente abalados.
Na terceira semana, numa manhã de quarta-feira foi o barbeiro que, abrindo a porta da barbearia deu de cara com um cavaleiro segurando uma balança montado num cavalo negro.
Perguntou se podia ajudá-lo e percebeu no seu íntimo que seus preços de corte de cabelo e barba eram muito baixos e injustos e certa indignidade tomou conta de si. Ele não notou quando o cavaleiro foi embora devido a que todo o povo da Campina estava a reclamar de fome e de injustiças.
Teve que ter uma intervenção do Padre Dimas, que, segundo ele, havia também sonhado com a fome assolando a Campina, mas, ao contrário das reclamações e do sonho premonitório, ali abundava o alimento e tudo o que se plantava era colhido com sucesso. Fez as pessoas verem que tudo não passava de um grande embuste proclamado pelos Cavaleiros do Apocalipse e então as pessoas se deram conta das injúrias que tinham cometido e tentaram e conseguiram esquecer o ocorrido.
Agora restava esperar o quarto e último cavaleiro – o da morte - que apareceu na semana seguinte para o Padre. Vinha o cavaleiro segurando uma jarra e seu cavalo tinha uma cor pálida, como a de um cadáver que se decompõe, muito esquálido e quase a cair.
O cavaleiro ofereceu a jarra ao Padre Dimas e então todo o inferno apareceu diante de seus olhos. Tudo ficou escuro e mau; o Padre Dimas teve muita dificuldade em refugar o presente mortal que lhe era oferecido, mas com a força do seu orgulho conseguiu segurar, diante de seu coração, uma cruz benta e ali ficou de olhos fechados, tremendo inteiro, rezando rezas sem nexo e pedindo que a morte fosse embora da Campina.
Sentiu uma lufada de vento quente em seu rosto, abriu os olhos e viu o sol brilhando naquele dia primaveril.
A vida retornava à Campina da Cascavel e a única coisa que a população não conseguia entender é: como é que estavam no mês de outubro se não tinham vivido o mês de setembro. Poucos velhos sabiam desse episódio, mas preferiram nunca comentar.



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