Por Michele Calliari Marchese
Levara um tiro.
Tinha lembrança disso
além de sentir o sangue quente empapando sua roupa. Fechou os olhos e uma
lágrima correu, não sentia dor alguma apenas um formigamento geral num estado
de semiconsciência. Ouvia muitos gritos vindos de todos os lados que retumbavam
em seus ouvidos sem dó nem piedade. Tentou reagir, mas o que via era muitas
pernas e sapatos a correrem ao seu redor e os gritos que não paravam de
acontecer. O pó entrou em seu nariz e teve uma vontade irrefreável de espirrar,
porém não pôde fazê-lo; alguma coisa cortou no meio de sua carne e a dor foi
insuportável.
Ele sabia e sempre soube
que um homem só não poderia pelejar com dois homens armados. Não acreditava que
aquele seu desafeto traria o amigo para emboscá-lo no bar. Um entrou e o outro
ficou lá fora, de tocaia para o caso do plano dar errado. Nunca desconfiou
disso. Tinha certeza de sua bravura e nunca fugiu dos problemas. Achavam que
ele estaria desguarnecido de proteção. Enganavam-se decerto e era feliz por
isso.
Levou um susto quando viu
o amigo do desafeto na porta do bar com o revólver estendido em sua direção,
apavorado por encontrar o outro morto no chão. Só entrou porque ouviu os
disparos e uma grande correria. Tinha o rosto transtornado quando atirou no
comissário e ele ainda tinha os pensamentos em ordem quando ao cair atirou no
seu assassino. Morto os dois. “Ou nós três”, pensou.
O desafeto não queria
pagar os tributos exigidos e sabia que nesses casos, bastava que ele
telegrafasse para a capital que o dito teria tudo confiscado com multas
altíssimas devido às ilegalidades de seu comércio. Combinou no meio da tarde um
encontro no bar do Hotel para acertarem a quantia e, como comissário, enfrentaria um mar de lamentações sobre a precariedade
de dinheiro daquele sem vergonha. Odiava quem não pagava impostos. Mas amava a
mulher dele.
Havia saído da cama de
amor para encontrar o marido traído no meio da rua. Tinha tudo planejado: Se
ele não pagasse, contrataria um jagunço para dar fim àquele pobre diabo.
Casaria com a esposa do futuro morto em outra cidade e viveriam bem e felizes e
tinham um vasto horizonte de amor à sua frente.
Conheceu a Margarida
atrás do balcão do comércio do marido onde fora fiscalizar numa quinta-feira de
verão. Nunca esqueceria aquele dia que viu o amor pela primeira vez na sua vida
e sentiu o perfume dela que fez um rombo em seu coração. Das conversas de
balcão para a cama ardente foi uma semana, estava desgostosa do casamento, a
coitada.
Tinha casado pela
conveniência dos pais e isso entristeceu ainda mais a existência do comissário
que lutava contra a paixão que sentia por ela. Num desses encontros furtivos,
encontraram uma vizinha que ia visitar a Margarida. Quando ela foi bater na
porta, ele saía por ela com o riso leve e a frouxidão de depois do sexo. A
Margarida comentou no dia seguinte as suas impressões e achava que todo mundo
já sabia que eles eram amantes, pois que o marido estava diferente no trato com
ela.
Nunca imaginaria que ao chegar
à Campina da Cascavel teria todos os seus sentidos postos à prova. Um amor
periclitante e um comerciante fraudulento. Estava fazendo as férias de um
colega seu na região e chegara com a triste impressão de que um dia as coisas
acabariam mal. Tentaria se aposentar antes de tudo e sairia de lá assim que seu
amigo voltasse. Não tinha as adaptações necessárias para viver em cidades
pequenas, ermas; gostava de cidades grandes com movimentações e lugares para
onde ir quando não se tem aonde ir.
Agora estava ali. No chão
sujo de terra, se esvaindo aos poucos e com lembranças que jamais esqueceria. O
comerciante sentado do seu lado esquerdo com uma arma apontada para a sua
barriga. Pegou-o de surpresa quando atirou com a mão direita em seu peito
fazendo-o cair morto na hora. Aquela confusão de gentes correndo e o rosto
transtornado do amigo do morto na porta de entrada a lhe mostrar a morte
iminente.
Fechou os olhos e pensou
na Margarida. Ela ficaria viúva do marido e do amante ao mesmo tempo e a esse
pensamento expirou pela última vez com um sorriso nos lábios.
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