Por Michele Calliari Marchese
Esse causo aconteceu na
Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo
único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem
por essas bandas.
A Dona Lucia era conhecida na comunidade pela sua
beleza deveras extasiante, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos caindo
pela cintura e que balançavam ao menor movimento da cabeça. Não tinha namorado
e nem queria um “porque ainda estava no ovo o galo que iria tirar ela de casa”.
O pai de Dona Lucia não
aguentava mais despachar os candidatos mediante a negativa da moça, até que
foram espaçando os pedidos de namoro, casamento e, pasmem, até de ajuntamento
por um moço casado de Faxinal. Foi a gota d’água que faltava para que se
fechasse de vez o coração da bela Lucia.
Numa tarde de julho, voltando
da mercearia, Dona Lucia sentiu uma soneira dos diabos e correu de volta para
casa para dormir um tico, pois tinha seus afazeres e não costumava deixar a mãe
sozinha na luta doméstica. Chegou em casa, deitou na cama e dormiu.
Quando foi a noitinha o pai
deu pela falta da menina, perguntou e chamou para que ela fosse à mesa jantar.
“Tá dormindo, a coitada” disse a mãe toda prestimosa. “Deve ter se cansado,
deixe dormir, se ela sentir fome ela come depois”. Jantaram os pais e os oito
irmãos todos varões. A mãe ficou lidando com a louça na cozinha e reclamando
que o sabão estava no fim.
Na manhã do dia seguinte, com
a geada cobrindo tudo, foram se levantando um a um, mas nada da Dona Lucia
acordar. Quando chegou a hora de tirar o leite das vacas e tratar as galinhas,
a Dona Lucia ainda estava dormindo e mesmo depois de muitos chacoalhões ela
continuava em seu sono. A mãe começou a ficar assustada e a gritar convulsivamente.
“Ela está morta?” pediram.
“Não, veja, ela tá quentinha
da silva”, disse a mãe entre soluços.
“E porque ela não acorda?”,
disse o quinto irmão.
“Deve estar com algum mal”, o
pai intercedeu. “Vou chamar o protético”.
“Chame um médico, homem, o que
vai fazer aqui um protético?” disse a mãe.
“O médico não vem mais nesse
mês”, disse o primeiro filho varão.
A mãe angustiada resolveu
esperar o protético e até que ele não chegasse, resolveu chamar as benzedeiras
que chegaram rápido e em conluio e muito cochicho chegaram à conclusão que o
mal da Dona Lucia, benzedeira nenhuma curava. Fizeram uma corrente, acenderam
algumas velas e entregaram nas mãos do protético, dando graças que assim, os
maridos não teriam mais a quem olhar a não serem elas mesmas.
O protético chegou e começou o
exame. Mal ousou abrir o botão do casaco para auscultar-lhe o peito com os
ouvidos e enfim diagnosticou: “Está morta, mas esperem até amanhã que o corpo
estará frio para enterrá-la” e virando para o pai choroso disse: “São duas
galinhas, senhor”.
O padre Dimas, que chegou em
seguida, não acreditava no que via e perguntou então há quanto tempo ela estava
daquele jeito. “Cinco dias hoje, seu padre, e não esfria.” O padre resolveu dar
um fim naquele invelório e mandou chamar o barbeiro para buscar a moça, não sem
antes dar a extrema unção.
Então veio o dia que a Dona
Lucia seria enterrada. O povo fez fila para dar o último adeus e tocar em suas
mãos para sentir se ela já tinha esfriado.
Dona Lucia estava quente, como
viva, como uma morta viva.
O povo então saiu da casa para
comer os assados que a mãe tinha feito e tomar o vinho do vizinho, até que o
barbeiro dava os retoques finais na morta e dar início ao féretro.
O caixão baixando na terra foi
a visão mais triste que se teve notícia desde então e quando encostou na terra
fria e gelada ouviu-se um “toc toc”. Todo mundo empalideceu e emudeceu e alguém
lá no fim da fila desmaiou.
“Toc Toc”
“Toc Toc”
O coveiro agitado e nervoso já
estava subindo e se agarrando pela terra do buraco.
“Abre aí”, disse o pai do alto
do buraco.
“Eu não abro, não senhor”,
disse o coveiro patinando no buraco e se agarrando nas pernas das pessoas que
estavam na beirada para escutar melhor.
“Toc toc”
“Pois eu abro” disse o pai se
enchendo de coragem e esperança de que a filha estivesse ainda viva dentro do
caixão. A maioria já tinha escapado do cemitério. As beatas ficaram abanando o
rosto da mãe que desfaleceria a qualquer momento.
Quando o pai e os oito irmãos
conseguiram abrir o esquife, foi uma exclamação generalizada. O que estava no
caixão era um amontoado de roupas, pedras e objetos de peso, mas nada da morta.
E o “toc toc” continuava, até que por fim descobriram que o autor das batidas
era o marceneiro que morava em frente ao cemitério. A mãe e as beatas acabaram
por desmaiar e o pai desolado jazia de ataque cardíaco; não aguentou o tranco e
por fim usou o ataúde da filha para seu próprio e a confusão de coisas e
sentimentos levou o prefeito a decretar luto civil por três dias. Até o
governador veio para a Campina para dar o desaparecimento por verídico.
Depois de muitos anos enfim,
soube-se a verdade quando o barbeiro morreu. Ele já estava na casa dos sessenta
anos e há muito doente de sífilis. Encontraram o corpo dele estendido na cama,
nu.
Ao lado dele um caixão com tampa de vidro e a Dona Lucia dentro, em perfeito estado de conservação, também nua e ainda quente.
Ao lado dele um caixão com tampa de vidro e a Dona Lucia dentro, em perfeito estado de conservação, também nua e ainda quente.
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