Por Helena Frenzel
Passei a maior parte do tempo pensando nos outros, reprimindo
o verdadeiro sentir para, num dia, tudo vir à tona; do fundo do rio veio à
tona. Tenho uns dez minutos para contar a minha versão, antes que cheguem e me
levem para o lugar onde dirão tudo o que
for dito pode e será usado contra você. Pois aquele dia havia começado difícil,
várias noites sem fim não deixadas para trás, e uma discussão começada sem
futuro previsto e certa ameaça de separação: como estamos não ficamos e juntos assim não vamos ficar. Nada
altera tanto a vida quanto um filho e foi isso o que nos aconteceu. Um ano e
meio é idade que criança começa a testar os pais, fica tudo muito mais
complicado. E numa manhã assim, buscando ar e forças para seguir, em meio a
problemas práticos e aborrecimentos acumulados, caos na casa e na vida, saí
para passear com meu filho esforçando-me para não descarregar
nele a minha tensão. Adultos pensam; crianças, não. E antes que chegasse a um
ponto de no return saí buscando o
conselho das árvores, nuas de frio e vestidas de neblina turva. Pois assim
íamos pelo caminho, um caminho marcado por todos os dias que o fazíamos, com
todas as paradas obrigatórias e o teatro habitual do meu filho que vez em quando empaca como quem diz: só
sigo se me carregarem e eu digo não
carrego até que ele se convence, aceita e segue emburrado. Todos os dias
tinha sido esse o jogo. Nisso, passou a mulher com o cachorro, subindo. Ela
passou por nós e parou mais adiante, senti em seu olhar a muda acusação: mãe má, como pode forçar o filho a subir
todo este caminho sem querer carregá-lo? Não ligo para opiniões alheias,
pouco menos para olhares. Segui meu caminho tentando não cair no teatro matinal
que meu filho representa igualzinho, todas as manhãs, para que os outros pensem
que sou má mãe, mas quem não viveu a guerra fria não sabe o que é ser vigiado.
As pessoas deste lugar dizem defender o privado, mas só o fazem pelo gostinho
de, mais tarde, fuçarem vidas alheias em busca de cadáveres no armário. A
premissa é que todos têm algum. Já quem viveu fora dessa paranóia não tem medo
de pôr tudo na rua: mesa, cama, cobertas, tudo aberto. Por
isso dizem que não há graça na moderna novela: esfinge sem segredos, como diria
Oscar Wilde. Pois a mulher seguiu o seu caminho; eu e meu filho, o do rio. Nos
cruzamos mais à frente: nós indo e ela voltando, o cachorro ia na coleira e
dele só recordo a cor: preto. Eu havia deixado meu filho um pouco mais para
trás naquele momento, estávamos no meio do carrega-não-carrego,
empate equilibrado. Eu sabia que se me afastasse um pouco ele desistiria de
brincar de estátua e viria ao meu encontro, mas devo ter feito uma cara de
enfado, o que disparou o conselho não pedido nem aceito daquela mulher, soando
a repreensão: uma criança desse tamanho
não pode ser tratada desse jeito! E citou um cenário pouco provável de um carro vindo em
alta velocidade na curva do outro lado e eu sem tempo de reagir. De onde eu estava poderia ver com antecedência qualquer coisa se aproximando
da curva distante, fosse gente ou algo mecânico, mas não achei que valesse a pena
argumentar. O tom autoritário e o intrometimento não desejado foi o pavio que
explodiu toda a raiva e tensão tragos, e cresceu como uma confusão de Faixa de
Gaza, sem futuro nem fronteira, como pura troca de opiniões e agressões, onde
todos têm e não têm razão ao mesmo tempo, quando o sábio consegue calar se o descontrole
não foi mais rápido e cortou todo e qualquer fio de raciocínio plausível, e deuses
se retiram do meio para não terem que decidir por lado nenhum, e somos um
barril de sentimentos prestes a voar pelo ar, ou um martelo ou um pedaço de pau.
Alguns fingem a vida inteira até que a morte vence: repressão mata por
sufocamento. Quando meu filho, eu, ou um programa trava, a única coisa a fazer
é apertar o botão de desligar, esperar um pouco e ligar novamente "a máquina", e
num desses laços ininterruptos me vi naquela manhã, no automático. Tudo piorou quando a mulher
disse que era educadora do Estado e essa palavra "Estado" deu vazão a uma revolta cega contra toda cultura ou mania de
observar a vida alheia, e dar palpites não pedidos, e de mandarem oficiais de
justiça às nossas portas para termos que provar que não, senhor, não temos nenhum cadáver no freezer, como pensou o
vizinho que noite e dia observa nossas ações e vigia para o mal do bem comum, e
tem solução para os problemas de todos, menos para os próprios, sequer tempo
para limpar a própria calçada quando muita neve cai, muito menos consegue
enxergar a inutilidade desse serviço de vigilância voluntária que o Estado ou a comunidade nem pensam em
remunerar, mas que é feito e incentivado em nome do bem estar de todo um povo
que nada mais quer do que ser livre e viver a gosto, sem intromissões. Eu não
sou daqui, desconheço essa necessidade de vigiar os outros e odeio ser vigiada,
muito mais detesto ter minhas ações julgadas por estranhos, pessoas que não
querem ajudar ninguém, nem mesmo os necessitados. O que lhes move é o puro
prazer de controlar, e só. E numa ausência de razão eu disse à mulher, se
foi mesmo isso, que eu não tolerava ninguém se metendo na forma como educo meu
filho, que ela não me conhecia, nem a ele ou à nossa situação e que por isso
não tinha o direito de dar-me orientações, ainda mais não pedidas. Eu disse que
não queria ouvir seus conselhos e ela gritou que me os daria assim mesmo,
quisesse ou não ouvi-los. E a fala mal começada do meu filho parou ali, no rio.
Tomei-o nos braços — ele vencera a queda de braços — e dei as costas à mulher depois
de mandá-la para o inferno, mas não sei se ela foi. Lembro de ter chegado mais
à frente, me sentado em um banco e ter tido a visão dela sumindo, por entre a
neblina, puxando o cachorro sem olhar para trás. Eu e meu filho ficamos mais um pouco no
banco, mirando o rio. Eu, tentando conter as ondas de raiva que me sacudiam;
ele, imóvel, nem um pio sequer. Decidi voltar para casa não mais dando a volta
pelo cemitério, nosso caminho habitual, mas passando por meio dos mortos. Com
meu filho, agora em meus braços, subi as escadas devagar; eu e ele, cansados do
esforço matinal, e o peso dele englobando o mundo, meus olhos vagando entre
túmulos, lajes e epitáfios. Cemitérios são lugares bonitos e tranqüilos, bons
para se pensar no acaso. E eu seguia tentando pensar durante o caminho, mas chegamos
em casa e toda a raiva em forma de lágrima escapou-me em soluços e foi assim
que derreti e me entreguei. Antes disso tive ainda tempo de tirar os sapatos do
meu filho e limpar a lama e o excremento que ele havia pisado em algum lugar. Lavei os sapatos dele e pus para secar, como sempre faço.
Estávamos sozinhos em casa e eu chorava como um rio cheio no inverno amazonense, levando
toda a margem junto e toda tentativa de ponte e represa. Trabalho doméstico não
rende, mas acalma: sentei-me à tábua e comecei a passar roupas, meu filho tremendo
e girando, mudo, ao meu redor. As lágrimas vinham ainda em soluços com muita
força e, nessa hora, a campainha tocou. Do resto você já sabe. Mandei a mulher
para o inferno, mas não sei se ela foi, já disse. Lembro-me dela sumindo na
neblina, puxando o cachorro pela mão. Senti raiva, muita raiva. Só havia
excremento em nossos sapatos, juro, não lembro do sangue nas mãos.
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