domingo, 15 de dezembro de 2024

Confraternização Natalina

Por Helena Frenzel


Cinco minutos para as seis e elas ainda não haviam encontrado o local. Iam seguindo o navegador meio que desconfiadas, pois lhes parecia pouco provável que houvesse ali um restaurante (no meio de todo aquele mato) naquele rincão de autoestrada. E antes que tivessem a certeza de que estavam por certo no caminho errado, pequenas luzes denunciaram que havia (sim) uma grande casa no final daquele percurso. Estava muito escuro já àquela hora naquele dezembro tão frio, e só contavam com as luzes dos faróis do carro. Acharam que finalmente haviam encontrado o lugar, pois havia muitos veículos estacionados por toda parte e elas demoraram um meio minuto para encontrarem uma vaga.

 

- Lugar mais estranho esse para se fazer uma confraternização, né? - disse Fernanda. 

- Sim, é estranho, mas parece que o chefe já está aí. - disse Maria, apontando para o carro com o nome da firma estacionado do outro lado. 

- Será que já chegaram todos? - disse Fernanda, ao mesmo tempo que prestava atenção a quem vinha descendo de um carro que acabava de parar a poucos metros do estacionamento. 

- Parece que é a Mariane. Não sei dizer direito porque está muito escuro - disse Maria, fechando a porta do carro e ajustando o gorro à cabeça, para proteger as orelhas. 

- É ela sim! - concluiu Fernanda quando as duas iam caminhando em direção à mulher que havia descido do carro e agora se despedia de quem estava ao volante.

- Tá bom, até mais tarde! - disse ela, e o carro se pôs em marcha e começou a voltar pela estradinha esburacada de terra por onde tinha vindo.

- Boa noite! - disse Fernanda, se aproximando. 

- Ah, Fernanda! Oi, Maria, boa noite! Não estava ainda certa de que era esse o lugar. É aqui mesmo?! - disse Mariane, também estranhando a escolha do local.

- Pensamos a mesma coisa, - atalhou Fernanda - lugarzinho estranho pra se fazer uma confraternização natalina, não é não? E logo numa sexta-feira treze, repararam? Dei tantas voltas pra chegar aqui que comecei a duvidar da seriedade do GPS. Espero que pelo menos a comida seja boa, pra compensar a viagem!

- Deve ser sim! Parece que o chefe é amigo do dono. - disse Mariane ajustando o gorro e pondo-se a caminho ao lado das colegas.

 

         Iam conversando enquanto buscavam a entrada do restaurante. Maria olhou ao redor e ficou tentando imaginar como se veria aquele lugar durante o dia, pois o estacionamento era enorme e havia muitas plantas espalhadas pelo terreno. Foram seguindo um muro vivo que estava iluminado com pequenas luzinhas de enfeites natalinos e logo viram que estavam certas em achar que aquele era o caminho para a entrada, porque na porta, numa área destinada a fumantes, avistaram três colegas que lá estavam, fumando, encolhidos de frio dentro de seus casacos com capuzes: Félix, Marcos e Rainer. Maria cumprimentou o grupo e foi logo se afastando. Não suportava cheiro de cigarro e deu a desculpa de que estava frio, o que não era faltar com a verdade já que o frio estava lascante, e passou direto para o terraço. Mariane tirou da bolsa um cigarro e Fernanda, que também não era fã de fumo, juntou-se a Maria dizendo que os esperaria lá dentro. 

         Maria afastou a pesada cortina vermelha de veludo que separava a entrada do resto do saguão, provavelmente uma forma de mitigar o efeito do ar frio que vinha de fora. Logo na entrada, avistou a mesa onde estava o chefe com a esposa e a filhinha, uma menina de uns oito ou nove anos. Ela e Fernanda se aproximaram, deram boa noite e trataram de se informar onde deveriam sentar-se. A esposa do chefe, que estava terminando de espalhar uns presentinhos pela mesa, recebeu-as alegremente e disse que as duas poderiam sentar-se logo ali, próximo à ponta. Maria escolheu o último assento, que lhe facilitaria a vida quando tivesse que levantar em algum momento. Não demorou muito e os fumantes se juntaram ao resto do grupo. Dois lugares na mesa ainda estavam vagos e Fernanda deu pela falta de Teresa, a secretária, que chegou com o marido logo depois que o garçom já tinha vindo perguntar o que os convidados desejavam para beber. 

         O grupo estava completo e agora esperavam apenas que o garçom trouxesse as bebidas e tomasse o pedido de Teresa e do marido para que pudessem fazer o brinde inicial. Teresa também chegou comentando que demoraram porque estavam procurando o local e todos concordaram que sim, que era uma localização fora do comum para um restaurante que, no entanto, estava lotado naquela noite. 

         Ao que parece, uma empresa grande realizava uma confraternização numa parte do restaurante onde estava organizado um buffet. Duas mesas, cheias de homens corpulentos, estavam próximas à porta que separava o grupo do buffet dos demais clientes do restaurante e aqueles homens pareciam pertencer à empresa grande. A mesa oposta à do grupo de Maria foi ocupada por umas dez mulheres que chegaram pouco depois, e a mesa que ficava na ponta, com apenas dois lugares, foi preenchida por dois homens que falavam bem baixinho. Havia outros clientes nas mesas que ficavam do outro lado do saguão do restaurante, Maria não sabe quantas. 

O garçom voltou com as bebidas e, ao tomar o pedido de Teresa e do marido, disse que a comida poderia demorar um pouco, dado que a casa estava cheia naquela noite, como todos viam. 

Teresa, o marido e Fernanda começaram a conversar entre si. Maria preferia ficar só ouvindo, dado que não era muito de conversa. Mariane, Marcos, a mulher do chefe e Julián formaram outro grupo, enquanto que o chefe e Rainer se puseram a jogar cartas com a menina, para distraí-la. 

Não demorou muito e o grupo do buffet começou a fazer grande burburinho. Volta e meia vinham aplausos e gritos de “Aê!” e até então a coisa estava na raia do suportável, já que estavam ali comemorando algo, provavelmente uma confraternização de Natal, sendo que algumas mulheres escandalosas estavam com gorros de Papai Noel e falavam e riam muito alto, acabando com os estereótipos de que as pessoas naquele país carrancudo eram discretas e bem educadas. Maria estava certa de que o álcool já estava na cabeça daquela gente, e que por isso agiam como se ali estivessem sós, num galpão da própria empresa ou num estádio de futebol em plena Copa. 

A algazarra aumentou quando alguém do grupo iniciou uma espécie de sorteio. Cada premiação era de arrombar os tímpanos e Maria notou que as mulheres da mesa oposta, o casal da mesinha da ponta, e seu próprio grupo, que na verdade todos estavam muito incomodados com o barulho do grupo maior, dado que nenhum tipo de conversação era possível. O garçom veio e tomou os pedidos dos pratos com muita dificuldade por conta do barulho, e Maria começou a ouvir (de todos os lados) reclamações pela falta de consideração do grupo maior para com os demais. 

Os garçons, coitados, esses corriam de lá para cá. A algazarra no grupo vizinho aumentou tanto que todos os holofotes pareceram estar voltados para uma loura tipo Barbie que ria e falava altíssimo, com voz esganiçada, enquanto dançava por entre as mesas ao ritmo dos gritos e assovios dos homens, causando um certo tipo de vergonha alheia às outras mulheres que não estavam no grupo dela.

 

- Daqui a pouco ela sobe na mesa e começa a tirar a roupa. - disse Fernanda. 

- Meu Deus, típica festa de empresa! Imagino as fotos e vídeos que postarão na net mais tarde…- comentou Teresa, balançando a cabeça em sinal de reprovação.

 

Em meio à algazarra os garçons trouxeram as saladas (de entrada) e todos se puseram a comer calados, já que conversar era impossível, a menos que as pessoas estivessem a fim de gritar para serem ouvidas. Todos comiam, menos Maria, que havia pedido uma salada como prato principal, única coisa no cardápio que não levava carne.

O casal da mesa na ponta deu uma escapadinha, provavelmente para fumar, e foi seguido por uma parte do grupo que zelava pela algazarra: uma fileira de homens com cara de mafiosos seguiram em ritmo de carnaval a loura Barbie e outras três louras afetadas, vestidas com seus casacos longos de veludo. Pelo visto, iam a caminho de uma pausa para o cigarro, e as três louras puxavam o bloco carnavalesco. Maria achou que só faltava confete e serpentina para que o quadro ficasse ainda mais picaresco. 

Nesse meio tempo, quem tinha algo a dizer aproveitou a oportunidade, porque o barulho seguiu quando o grupo voltou a seus lugares. Não é possível que nenhum gerente tenha dito a esse grupo que tivesse respeito pelos demais clientes, reclamou Fernanda, mas pelo aperreio em que os garçons se achavam, dificilmente havia algum gerente por ali naquela noite, pensou Maria.

Servido e terminado o prato principal, veio a sobremesa. O grupo de mulheres da mesa oposta, em sinal de protesto contra a algazarra do grupo do buffet, começou também a dar vivas em tom de carnaval, e Maria teve certeza de que faltava pouco para que Baco em pessoa viesse participar daquela orgia natalina. 

Para completar o prazer da noite, todos no grupo tiveram suas sobremesas servidas, menos Maria, que terminou por chamar o garçom e dizer que se a sobremesa não estivesse pronta que deixasse pra lá. Tudo o que ela queria era terminar aquele suplício e poder voltar pra casa o quanto antes, e não deixou de pensar que a falta da sobremesa era o Universo livrando-a das calorias desnecessárias. 

A primeira a conseguir escapar foi Mariane, dizendo que tinha que ir embora mais cedo por conta sei lá do quê e que a estavam esperando lá fora. Saiu rapinho e levou um cigarro por acender entre os dedos. Quando Teresa e o marido disseram que também já iam, Maria cutucou Fernanda para que as duas aproveitassem a chance. As mulheres da mesa oposta tratavam de ignorar a algazarra do grupo do buffet e seguiam conversando aos gritos, o casal da mesa da ponta pediu a conta e saiu. Os únicos que não pareciam incomodados eram a filha do chefe, Rainer, que até aproveitou para cochilar entre um prato e outro (durma-se com um barulho desses!) e o chefe, que seguia jogando cartas com a filha como se ali nenhuma confusão houvesse. 

Maria é que não queria ficar naquele banquete greco-germano para ver se a profecia que haviam feito para a loura Barbie se concretizaria ou não, dado que a mulher já estava pra lá de alterada e parecia que o espetáculo ainda estava longe do final. No céu, encoberta por poucas nuvens, a lua cheia dava o ar de sua cara. Aúúúúú!! Trataram de alcançar o carro e sair dali rapidinho. A única coisa que lhes faltava naquela noite hilária era encontrarem um lobisomem no caminho, ou coisa do tipo.




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quarta-feira, 19 de julho de 2017

A Minha Versão


Por Helena Frenzel

Passei a maior parte do tempo pensando nos outros, reprimindo o verdadeiro sentir para, num dia, tudo vir à tona; do fundo do rio veio à tona. Tenho uns dez minutos para contar a minha versão, antes que cheguem e me levem para o lugar onde dirão tudo o que for dito pode e será usado contra você. Pois aquele dia havia começado difícil, várias noites sem fim não deixadas para trás, e uma discussão começada sem futuro previsto e certa ameaça de separação: como estamos não ficamos e juntos assim não vamos ficar. Nada altera tanto a vida quanto um filho e foi isso o que nos aconteceu. Um ano e meio é idade que criança começa a testar os pais, fica tudo muito mais complicado. E numa manhã assim, buscando ar e forças para seguir, em meio a problemas práticos e aborrecimentos acumulados, caos na casa e na vida, saí para passear com meu filho esforçando-me para não descarregar nele a minha tensão. Adultos pensam; crianças, não. E antes que chegasse a um ponto de no return saí buscando o conselho das árvores, nuas de frio e vestidas de neblina turva. Pois assim íamos pelo caminho, um caminho marcado por todos os dias que o fazíamos, com todas as paradas obrigatórias e o teatro habitual do meu filho que vez em quando empaca como quem diz: só sigo se me carregarem e eu digo não carrego até que ele se convence, aceita e segue emburrado. Todos os dias tinha sido esse o jogo. Nisso, passou a mulher com o cachorro, subindo. Ela passou por nós e parou mais adiante, senti em seu olhar a muda acusação: mãe má, como pode forçar o filho a subir todo este caminho sem querer carregá-lo? Não ligo para opiniões alheias, pouco menos para olhares. Segui meu caminho tentando não cair no teatro matinal que meu filho representa igualzinho, todas as manhãs, para que os outros pensem que sou má mãe, mas quem não viveu a guerra fria não sabe o que é ser vigiado. As pessoas deste lugar dizem defender o privado, mas só o fazem pelo gostinho de, mais tarde, fuçarem vidas alheias em busca de cadáveres no armário. A premissa é que todos têm algum. Já quem viveu fora dessa paranóia não tem medo de pôr tudo na rua: mesa, cama, cobertas, tudo aberto. Por isso dizem que não há graça na moderna novela: esfinge sem segredos, como diria Oscar Wilde. Pois a mulher seguiu o seu caminho; eu e meu filho, o do rio. Nos cruzamos mais à frente: nós indo e ela voltando, o cachorro ia na coleira e dele só recordo a cor: preto. Eu havia deixado meu filho um pouco mais para trás naquele momento, estávamos no meio do carrega-não-carrego, empate equilibrado. Eu sabia que se me afastasse um pouco ele desistiria de brincar de estátua e viria ao meu encontro, mas devo ter feito uma cara de enfado, o que disparou o conselho não pedido nem aceito daquela mulher, soando a repreensão: uma criança desse tamanho não pode ser tratada desse jeito! E citou um cenário pouco provável de um carro vindo em alta velocidade na curva do outro lado e eu sem tempo de reagir. De onde eu estava poderia ver com antecedência qualquer coisa se aproximando da curva distante, fosse gente ou algo mecânico, mas não achei que valesse a pena argumentar. O tom autoritário e o intrometimento não desejado foi o pavio que explodiu toda a raiva e tensão tragos, e cresceu como uma confusão de Faixa de Gaza, sem futuro nem fronteira, como pura troca de opiniões e agressões, onde todos têm e não têm razão ao mesmo tempo, quando o sábio consegue calar se o descontrole não foi mais rápido e cortou todo e qualquer fio de raciocínio plausível, e deuses se retiram do meio para não terem que decidir por lado nenhum, e somos um barril de sentimentos prestes a voar pelo ar, ou um martelo ou um pedaço de pau. Alguns fingem a vida inteira até que a morte vence: repressão mata por sufocamento. Quando meu filho, eu, ou um programa trava, a única coisa a fazer é apertar o botão de desligar, esperar um pouco e ligar novamente "a máquina", e num desses laços ininterruptos me vi naquela manhã, no automático. Tudo piorou quando a mulher disse que era educadora do Estado e essa palavra "Estado" deu vazão a uma revolta cega contra toda cultura ou mania de observar a vida alheia, e dar palpites não pedidos, e de mandarem oficiais de justiça às nossas portas para termos que provar que não, senhor, não temos nenhum cadáver no freezer, como pensou o vizinho que noite e dia observa nossas ações e vigia para o mal do bem comum, e tem solução para os problemas de todos, menos para os próprios, sequer tempo para limpar a própria calçada quando muita neve cai, muito menos consegue enxergar a inutilidade desse serviço de vigilância voluntária que o Estado ou a comunidade nem pensam em remunerar, mas que é feito e incentivado em nome do bem estar de todo um povo que nada mais quer do que ser livre e viver a gosto, sem intromissões. Eu não sou daqui, desconheço essa necessidade de vigiar os outros e odeio ser vigiada, muito mais detesto ter minhas ações julgadas por estranhos, pessoas que não querem ajudar ninguém, nem mesmo os necessitados. O que lhes move é o puro prazer de controlar, e só. E numa ausência de razão eu disse à mulher, se foi mesmo isso, que eu não tolerava ninguém se metendo na forma como educo meu filho, que ela não me conhecia, nem a ele ou à nossa situação e que por isso não tinha o direito de dar-me orientações, ainda mais não pedidas. Eu disse que não queria ouvir seus conselhos e ela gritou que me os daria assim mesmo, quisesse ou não ouvi-los. E a fala mal começada do meu filho parou ali, no rio. Tomei-o nos braços — ele vencera a queda de braços — e dei as costas à mulher depois de mandá-la para o inferno, mas não sei se ela foi. Lembro de ter chegado mais à frente, me sentado em um banco e ter tido a visão dela sumindo, por entre a neblina, puxando o cachorro sem olhar para trás. Eu e meu filho ficamos mais um pouco no banco, mirando o rio. Eu, tentando conter as ondas de raiva que me sacudiam; ele, imóvel, nem um pio sequer. Decidi voltar para casa não mais dando a volta pelo cemitério, nosso caminho habitual, mas passando por meio dos mortos. Com meu filho, agora em meus braços, subi as escadas devagar; eu e ele, cansados do esforço matinal, e o peso dele englobando o mundo, meus olhos vagando entre túmulos, lajes e epitáfios. Cemitérios são lugares bonitos e tranqüilos, bons para se pensar no acaso. E eu seguia tentando pensar durante o caminho, mas chegamos em casa e toda a raiva em forma de lágrima escapou-me em soluços e foi assim que derreti e me entreguei. Antes disso tive ainda tempo de tirar os sapatos do meu filho e limpar a lama e o excremento que ele havia pisado em algum lugar. Lavei os sapatos dele e pus para secar, como sempre faço. Estávamos sozinhos em casa e eu chorava como um rio cheio no inverno amazonense, levando toda a margem junto e toda tentativa de ponte e represa. Trabalho doméstico não rende, mas acalma: sentei-me à tábua e comecei a passar roupas, meu filho tremendo e girando, mudo, ao meu redor. As lágrimas vinham ainda em soluços com muita força e, nessa hora, a campainha tocou. Do resto você já sabe. Mandei a mulher para o inferno, mas não sei se ela foi, já disse. Lembro-me dela sumindo na neblina, puxando o cachorro pela mão. Senti raiva, muita raiva. Só havia excremento em nossos sapatos, juro, não lembro do sangue nas mãos.



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quarta-feira, 21 de junho de 2017

A Proposta

Por Helena Frenzel

Na maior parte do tempo te acusavas de falar demasiado. Teu problema, no entanto, sempre foi ouvir demais. Eram vozes, muitas vozes, miríades, caos; muito barulho em tua cabeça, confusão mental era tua queixa-mor. Não sei quantas vezes te vi rolar pelo chão e encaracolar-te buscando um canto. Era evidente o tanto que precisavas de silêncio, nem o ar parecia te ser mais necessário do que aquela pretensa paz, buscada a cabeçadas nas paredes, para depois, o torpor.
Tantas vezes testemunhei como tentaste prescindir da vida e dos ruídos, da existência e da razão. E tinhas razão! Era necessário que tu, que demonstravas querer calar todas as vozes, incluindo a tua, que tu, que tentavas aquietar sem dizer mais nada, que tu...
Bem, algo seguia movendo tua mandíbula, obrigando-te à produção de surdos sons semânticos, pragmáticos, esses sons e barulhos, burburinho e ruídos, esses gritos que nasciam de desabafos e refletiam a tua tão somente tua resignação ao prático, tudo incluído no teu “sim” de todos os dias e algo que te obrigava a ele. A vida, o sustento à família?, me pergunto. Fosse o que fosse, era sempre algo externo, sempre algo para já, quem sabe uma doença dessas dos tempos maus modernos, vá saber...
“Se é loucura ouvir vozes”, te perguntavas. Não. “Obedecê-las ao ouvi-las, isso sim, seria” e era o que proclamavas porque era o mais sensato e a manifestação de um espírito livre, tudo aquilo que tu não és.
Sempre haverá alguém para distribuir ordens, ordens e conselhos não pedidos, ordens e conselhos não solicitados e opiniões, ordens, conselhos não desejados, críticas sem construção e opiniões vazias, coisas que não pediste nem precisas, artefatos comprados com dinheiro mal-lavado, sem os quais podias viver, ou poderias, e em meio a esse clima ela ainda achou de vir à tua casa, não bastou ter telefonado pela manhã.
E veio com aquele risinho debochado, com aquela arrogância tão comum de insensíveis mercenários, com aquela expressão não só de estar, porém de achar-se ser mais e melhor. Entrou com o queixo erguido pois tinha as chaves, seguiu com o nariz por cima, olhando por baixo dos cílios, pintados, registrando a desordem do local. Se não havia ordem em tua cabeça como porias ordem em teu espaço? Bobagem, não? Ela parou no meio da sala e girou nos calcanhares sobre finos saltos de marca; o piso de tacos protestou e não foi o único, um dos companheiros tapou os ouvidos para evitar aquele ruído de unhas riscando quadros de colégios muito antigos, coisas de anos atrás. E ela olhou para ti fazendo um bico de nojo, como quem diz: “O inferno é mais limpo que este teu cubículo!” e não reagiste. Vestia um casaco de peles, talvez autêntico porque era má, e era inverno, trazia os braços colados ao corpo, como temendo qualquer contato e uma certa contaminação com teu espaço. Abriu a boca e disse: “Eu, em teu lugar...” e com um olhar de falsa pena e polidez muito treinada continuou o discurso, o que te tirou do sério e fez tapar os ouvidos, suplicando em fracos gemidos que te deixasse em paz. Tua boca se movia como se estivesses protagonizando um filme mudo, nenhum som inteligível saía com força de ti, mas era claro que gritavas mudamente, tinhas uma expressão transparente de dor. Era como se dissesses: “Tu, em meu lugar, não farias nada disso! Tu, em meu lugar, não obrigarias ninguém a nada! Não era a tua boca a que eles maculavam, não era o teu corpo que deixaria de ser teu, abandonado pela alma no inferno desses momentos.”
Foi grande o teu desespero ao notar que nada a faria calar e tua cabeça parecia latejar no ritmo alucinante que teu corpo denunciou, em tremores. Os tacos gemeram sob teus pés nervosos, tapaste os ouvidos com as mãos em concha e deste com a testa na parede, tantas e tantas vezes até que te viraste e tomaste o vaso e... quebraste o espelho, e lá perdemos o primeiro plano.
“E não sejas dramática!”, ela exclamou com voz camuflada de compreensão. Temi até que seriamente te machucasses. Há tempos havíamos notado que não existia um só quadro em todo o teu apartamento, isso logo me chamou a atenção, não havia em teu cubículo nada pessoal, tu tentas não deixar marcas, buscas tão somente existir sem cultivar nada, mas tuas crises denunciaram teu forte desejo de pedir ajuda. Tu sofrias e eu —acreditas?—, sofria contigo. Eu sofria, mas não podia me intrometer, não ainda. Nada neste mundo, neste país e neste cubículo, nada dentro de ti seria capaz de remeter-te ao vazio que poderia salvar-te, isto disseste uma vez, lembras?
Mas não, tu não a ouvias e ela seguia, e assim seguiram naquele crepúsculo. Ela, com as cobranças e a narrativa porque diálogo em que um só fala não é diálogo, porque ouvir perde o sentido e o tato e o cheiro e o paladar, sem falar da vista. A um cego não passaria despercebida a tua dor, mas a ela, a cega que tanto via e sempre tinha razão e tudo sabia melhor, ela não perceberia jamais...
“E ventila este quarto e abre a janela e deixa de fraqueza, e reage e te maquia, corta o cabelo e te veste melhor, e te move e te mexe e faz o que eles quiserem porque eles mandam e não tens que reclamar, e telefona e me conta e pede instruções e me deixa saber de tudo e deixo aqui dinheiro para as despesas e o contrato, pois sei que tu consegues, e aproveita a chance e compra um perfume caro porque eles querem uma Barbie. A geladeira está vazia e não digas que me equivoco, ou queres dormir na rua? É muito frio, eu em teu lugar...”
“Não!”, desta vez gritaste. Parecia haver vozes, muitas vozes em tua cabeça, não é verdade? E ela seguia com mais sugestões: “Aprende a fazer yoga, que melhora a circulação, e pilates, que ensina a respirar e mantém o corpo esguio e...” “Há quanto tempo não respiro?”, gritaste tentando interrompê-la uma vez mais. Há quanto tempo não saías para caminhar e tomar ar puro? “Sei que as veredas me salvarão”, continuaste e eu completei: “Porque o bosque salva as almas da perdição de homens e mulheres, de maridos traídos e de filhas sem pai nem mãe e dos ruídos e da resignação aos superiores e do medo de todos os modos, físicos e psicológicos e, o mais importante: produz tempo para pensar, mas, para pensar, antes, era preciso calar as vozes!” Meus companheiros, neste momento, me olharam estarrecidos e se preocuparam, tão grande era a nossa conexão, a minha contigo. Podias sentir-me?
Ela te ignorou e, num surto, ou numa overdose de coragem, não hesitaste e tiveste a ação de, em frente à lareira, virar-te e pegar o ferro e usá-lo, primeiro batendo nos ombros para desviar as tentativas de defesa dos braços e jogá-la contra a parede, feito uma aranha, depois empurrando com força, em giro, bem no estômago ou bem no coração, com uma força que eu não imaginava que tinhas em ti e cheguei a sentir o ferro vencer a resistência das carnes e sair diagonal do outro lado, forte e vermelho como o sol que se punha lá fora e anunciava bom tempo para o dia seguinte.
Cessou o grito. Por alguns segundos ficaste parada, o cabo do ferro em tuas mãos. Então soltaste o cabo e foram as duas desabando, ela sobre o tapete, sujando a parede de sangue e tu, sobre o sofá. 
Ficamos petrificados com a tua performance e, embora acostumados a coisas horríveis, surpreendeu-nos tua reação, te juro. Há uma câmera sobre tua porta, uma câmera guardiã, como chamamos, vês?
Teu destino era o ouvir e não o falar, era obedecer sem questionar, mas as vozes tiraram tua sanidade e num segundo tudo transbordou, como sempre transborda. Se não sabes o que te moveu de fato, nós tampouco.
Olhavas o tapete por entre os dedos, com os quais tentavas inutilmente tapar teus olhos, boca e ouvidos, como num tipo de máscara de tortura. Passaste um bom tempo muito quieta, parecias não saber o que fizeste, fitavas o rio vermelho criando afluentes no tapete branco naquela sala alugada a seiscentos por mês. Claro que nos informamos também do preço e da vizinhança, quem pensas que somos?
Fitavas a cara dela sem vida, retorcida num grito sem expressão. Tudo nela era postiço, dos seios aos cílios, das unhas ao sorriso, do amor à proteção. “Talvez me invejasse”, chegaste a murmurar, “quem sabe odiasse até”. Estou contigo nesta tese.
E em poucos minutos testemunhamos que um sentimento prático moveu-te a enrolar no tapete o cadáver e a acender a lareira e a esconder nas brasas evidências e o ferro, a livrar-te de uma vez por todas das ordens, das ordens e conselhos não pedidos, das ordens e conselhos e opiniões, das ordens, conselhos, críticas e opiniões vazias, de tudo o que não pediste nem precisas, artefatos sem os quais podias viver, ou poderias, e em meio a esse clima foste até a cozinha e apanhaste os sacos e os panos e os baldes e o rodo e a fita adesiva e deste graças ao fato dela ser mignon. Como alguém  tão miúdo podia ser tão sem escrúpulos? Isso nos perguntamos também nós. Os melhores perfumes nos mínimos frascos? Não, o cheiro que emanava dela era enxofre puro, disseste uma vez. Talvez tivesses apenas imaginado, mas...
Ao término do trabalho já não havia luz lá fora, esperarias a madrugada para pegar o carrinho de compras e descer até a garagem, tapetes persa estavam em promoção e eram apreciados no mercado das pulgas, o bosque não estava tão distante e... Bom, disto sabemos porque um de nós já esperava lá fora, esperava desde o momento em que ela entrou. De volta ao apartamento, teu problema seguia sendo o que fazer com as vozes que te assolavam, não? E quando, ao menos momentaneamente, haviam calado as ordens, ligaste o som e te puseste a ouvir Ravel.
Não me olhes com espanto... Sou erudito porque cursei artes cênicas antes de fazer o que faço agora, os colegas não me estranham mais, a vida dá voltas e esse é o meu tom natural: cínico, distante? Não, fato é que depois de Ravel baixaste a tela do laptop, nosso terceiro plano, e não pudemos ver o que fizeste depois, mas o que tínhamos gravado nos bastou e não quisemos esperar o próximo crepúsculo para procurar-te e fazer a proposta. Como vês, não te denunciamos nem vamos denunciar, ela era um ser humano desprezível, então fica elas por elas. Ocorre que tua clientela vale muito e estamos certos de que podemos negociar.

Tentar o suicídio é bobagem, moça, sei que queres a vida, só precisas de alguém que te tire deste lamaçal, podemos ajudar-te e isso eu garanto. Eu, em teu lugar, pensaria melhor... Afinal, liberdade é um lenço muito fino, quase invisível, e que vive passando de mãos em mãos, não concordas? Tão fino que chega a confundir-se com cordas, cordas que nas costas nos dão, ou enforcam... Vivemos nas sombras e ouvimos até as vozes em tua cabeça, quem acreditaria que existimos? Mas uma coisa te digo: estás sempre livre para escolher.


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