sábado, 6 de setembro de 2014

Um Cobertor


Por Helena Frenzel

Desde pequenino vivo às voltas com este meu incompreendido dom: o dom do bom ouvido. Antena, sensitivo, médium, maluco, aproveitador, perdi a conta das vezes que fui acusado de charlatanismo e já desejei muito a surdez, porém, sempre que tentei tapar os ouvidos, as vozes na minha cabeça aumentaram tanto em quantidade e em volume, que o peso dos sussurros não pude mais conter. Naquele domingo frio eu voltava de um passeio matinal pelo bosque e parei junto ao córrego para ver a passagem das águas e foi então que começou:
Que lhe restava pouco tempo, disso ela sabia, só não sabia que seria assim. “É difícil relembrar e rever em detalhes o que tão rápido se passou”, ela me disse. Sabe quando se perde a noção de tudo? E naquela tarde era assim que ela estava. O cansaço era grande, enorme a confusão de vozes ininteligíveis porque surda se tornara aos latidos do mundo que distinguia através de um véu quase cego. Ela sempre obedeceu, o comando era sua vida e a obediência era o que lhe garantia casa, comida e atenção. Ela dormia cedo, deitava-se ao escurecer e levantava-se com as primeiras luzes, todos os dias com uma fidelidade não melhor definida que fidelidade canina.

Enxergava apenas sombras, como disse, mas sentia tudo ao seu redor, e por isso teve pena de Maria e, mais uma vez, com sua obediência, quis facilitar para ela o final, a despedida, pois sabia que não duraria muito. Enquanto a doutora apalpava sua barriga, sentia os dedos delicados buscando sob sua pele o conhecido algoz, mas um exame de sangue guiaria a decisão, foi o que ficou decidido ali naquele consultório da Rua Anísyo, número 310. “Eu, que sempre tivera medo de agulhas, de tanto cansaço já nem resisti”, ela me disse. Sentiu apenas uma mão pequenina segurando-lhe com delicadeza e uma leve picada, nem mesmo um frêmito, nem mesmo dor, era quase um abandono de si, e todo o tempo sussurravam-lhe palavras doces, de que iam conseguir, de que já estavam terminando, de como ela era muito corajosa e coisas que tantas vezes ouvira de outras pessoas mas sem captar que obediência era tudo o que sempre esperavam dela e ela de si. Terminado o exame, teve ainda forças de arrastar-se até outra sala, pois agora era esperar. 
Que era o fim ela já sabia, só não sabia quando ao certo, como ninguém sabe aliás, e por uma meia-hora a máquina centrifugou suas lembranças com as de Maria, as alegres com as da dor, pois antes de chegar à família havia ela passado pelas mãos de um ser humano nada humano, um verme valeria mais! Ninguém nunca soube ao certo, nem mesmo ela, o que lhe acontecera no passado, mas de homens tinha pavor. Quando pequena, urinava-se nas pernas tamanho o pânico e o horror que lhe tomava só em perceber que qualquer homem se aproximava, e por isso se agarrou a Maria, que temia os seres masculinos tanto quanto ela, embora tivesse já aprendido a defender-se e enfrentá-los. Sua natureza dócil nunca lhe permitiu revidar, o calar-se era seu refúgio, e assim foi feliz, sem arrependimentos. Agiu quando foi preciso, só quando, mas só para se defender ou aos outros, e o cessar da máquina centrífuga levou Maria a uma outra sala e obrigou-a à inevitável decisão. 
Maria disfarçou o choro, pois sempre fora muito forte, ela mesma já tendo lutado contra a irmã gêmea da vida, a morte, aprendera a resignar-se e aceitar, das duas, as duras decisões. “Eu estava tão fraca que só captei o horário... por volta das oito e meia, depois que o expediente findasse a doutora viria até nós.”, ela me disse. Maria a pôs no carro e o mundo escureceu para ela mais uma vez, por uns dez quilômetros. Em casa, buscou seu canto. Há dias não sentia vontade de comida, só precisava beber. E queria, e bebia. Bebia como se fosse a água última da vida da fonte de Salomão e deitou-se um pouco, o cansaço a venceu. 
Já era noite, deveria ser quase oito e meia porque a médica era pontual. Maria andava de um lado para o outro, vez ou outra conversando com o filho rapaz que, triste, observava seu estado. O gato a olhava de longe, ela não o via mas sentia o seu cheiro, sabia que ele estava ali, despedindo-se. Quando Maria a deixou um pouco, ele chegou de mansinho e passou uma das patinhas por seu rosto febril. E ela me disse: “Disso eu jamais esqueci, um dos tantos amigos que fiz e éramos tão distintos, distintos porém iguais, de certo modo. Sei que sentirá minha falta, como a menina também. Ela não sabe de nada, puseram-na para dormir e apenas disseram que eu estava cansada, e que por isso não poderia me ver. Ela estava com Maria, no carro, mas todo o tempo não captou o que de fato se passava. É que não há fim para as crianças, parece que não há mesmo um final, apenas um estado e uma passagem, um tempo de separação.” 
A médica chegou e todos já estavam preparados, principalmente ela, que bem sabia não veria o próximo amanhecer, resignada. Primeiro foi o anestésico seguido da promessa de que ela não sentiria dor, de que seria rápido e da explicação de que se não fosse aquele o caminho, o natural poderia ser tortuoso pela falta de glóbulos brancos e do transporte do sopro da vida, e de que o instante da partida poderia ser tão agonizante que nem ela, nem Maria, nem o rapaz, nem a médica, nem a menina que nada sabia, e nem o gato poderiam jamais conseguir esquecer e, isso sim, seria um desastre pois quem teve uma boa vida como ela tivera, merecia uma boa morte, em paz, e era isso o que todos ali estavam tentando lhe dar. 
Ela já estava a meio-caminho, mas ainda ouviu a médica perguntando se já poderia aplicar a outra injeção, se Maria estava de acordo ou se precisava de algum tempo mais para a despedida. “O tempo chegou”, dissera Maria com enorme tristeza e a médica aplicou. 
“Em menos de um minuto senti o cansaço de anos ficando para trás rapidamente, e eu, finalmente, gozava o descanso. Eu ainda estava ali quando ouvi a médica explicar que eu não estava mais entre eles, mas eu estava, de certo modo eu estava e vi as pessoas ao meu redor sentindo-se muito tristes mas relembrando os bons momentos que a vida sempre dá, por pior que seja, relembrando a minha chegada ao seio da família, as vezes em que mostrei o meu valor, de como todo mundo me conhecia e me amava, de como eu era querida, fiel e dócil, dos carinhos, dos cuidados, dos momentos finais. Então uma luz foi se aproximando e ainda pude ver Maria cobrindo meu corpo magro com a coberta florida que sempre me acompanhou.”, ela me disse.

Nesse ponto ela calou-se e eu voltei ao mundo real, sem susto, e na cabeça fiquei com a imagem de uma linda cadela pastor alemão e quatro letras na combinação “Susi”, então ouvi uma outra voz mais grave, dizendo:
“No dia seguinte, logo cedo, Susi foi enterrada com toda a honra que merecem os amigos leais, sejam humanos ou animais. Ela viveu uns quinze anos, acima da média de vida para um cão pastor-alemão. Deixou saudades e um grande exemplo de amor. E ela não sofreu, seu rosto estava pleno da serenidade com que sempre viveu. Foi enterrada com a sua coberta especial, a florida. Agora peço a você que conte à menina a história que Susi contou. É essa a sua tarefa.“

Menina, se Maria não chorou, eu, que conto esta história, agora choro, e você pode até não crer na minha história nem neste meu dom do ouvido, o direito da dúvida é todo seu, só sei que tanto para as boas pessoas quanto para os bichos, deve estar reservado algo de bom após a partida, ainda que seja algo muito simples, como um grande, aquecido e macio cobertor.




Esta é uma obra de ficção, não se refere a pessoas nem a fatos concretos do mundo real e não representa a opinião ou crenças da autora nem as dos demais autores que publicam neste blog.

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