quarta-feira, 8 de março de 2017

Farpas malditas


Por Michele Calliari Marchese

Descobri há muito tempo que as farpas são malditas além de serem efêmeras assombrações. Nunca se vê quando elas adentram nossas carnes nos lugares mais doídos existentes e possíveis, entre os dedos do pé, próximo da cutícula, debaixo de uma unha. É horrível. Para tirá-las, além de uma agulha esterilizada (se puder), tem que ter brio. Muito brio, e coragem também. O certo é pedir para alguém tirar quando se estiver dormindo sob fortes efeitos de soníferos.

Qual é o prazer de uma farpa? Não se sabe até hoje se essas vigaristas têm vida ou se realmente vêm de algum lugar etéreo para cravar-se instantaneamente em nossa frágil pele.

Eu acredito que um dos maiores prazeres da farpa seja o de rasgar a meia fina que a mulher usa quando sai. As mulheres podem usar vestidos longos que combinem com sapato, bolsa e acessórios, porém quando ela veste a meia fina e chega ao lugar onde tinha que estar, a meia rasga. As farpas surgem do além e atacam as meias finas mesmo que a mulher esteja sentada numa cadeira de plástico. Ela pode estar em pé que a farpa aparece misteriosamente e acaba com a meia e com o humor, diga-se de passagem.

Não adianta procurar as farpas antes de chegar ao local, pois elas já rasgaram as suas meias ou estão já de moradia pronta entre os seus dedos se estiver com aquela sandália maravilhosa de salto alto que combina com a roupa.

Aliás, farpa e salto alto são farinha do mesmo saco, porque é comum encontrar uma mulher que já não tenha quebrado o salto do sapato na entrada de algum evento importantíssimo estando longe de casa e sendo o único daquela cor. Nem entro nesse assunto, é deveras penalizante.

De onde surgem as farpas? Como elas nascem? Por que vieram ao mundo? Nunca saberemos dizer, porém são praticamente invisíveis e fazem um estrago danado. Elas voam, fiquei sabendo. Elas são parte integrante dos discos voadores, fiquei sabendo também, porque não há como detectá-las de antemão, elas não podem ser vistas a olho nu antes de adentrar nossas carnes; depois que as removemos notamos o quão imensas são e que dores provocam e por que estão ali.

As farpas são seres nascidos para rasgar, furar e encravar. Não têm utilidade nenhuma a não ser querer ser lembradas pelos motivos mais banais do mundo, é como se ela estivesse chegando ao seu dedo e gritasse: “Ei, sou uma farpa, tá me vendo? Ah, não está, né? Mas logo você vai ver!” E de fato vemos e sentimos o real objetivo de uma farpa: Existir.

Oras, tenho ímpetos de organizar uma comissão internacional contra as farpas malditas, pois não levo comigo pinças e agulhas para tirá-las quando atacam. E acredito que ninguém as leva consigo para ir a lugares de última hora – que são quando elas aparecem cheias de si e pretensiosas que são não querem saber se os atacados são crianças, velhos, jovens, senhores e senhoras – Acredito que exista um exército delas por aí, prontas para o comando mais simples do general farpa; devem ter nomes e recebem medalhas por cada estrago que fazem e vão para nunca mais voltarem, essas ridículas. Porque existem zilhares delas esperando o combate, esperando a sua vez de ser a linha de frente e partir com o nada, talvez com alguma brisa e aterrissar incólumes nas pessoas que passeiam tranquilamente por aí.

Penso que nasceram com o mundo, no grande Big Bang; o universo nasceu e elas também, como um momento cósmico de grande valia para que nunca sejamos felizes de todo, para que nunca possamos nos divertir de fato, para que nunca possamos pisar de chinelos ou descalços sem a presença das farpas universais a nos pinicar inclementemente pelo corpo afora, ou pelas meias afora.

As farpas (conforme o dicionário Aurélio) é um substantivo feminino e significa: 
1-Ponta metálica penetrante, em forma de ângulo agudo. 
2- Lasca de madeira que por acaso se introduz na pele; felpa.

“...por acaso se introduz?” Faz-me rir. Elas estão cientes de que vão para isso mesmo, não têm outro objetivo a não ser o de se “introduzir objetivamente” na pele. Depois que são retiradas somem, alguém explica isso? “Nada é por acaso”, já me disseram em muitas ocasiões e que merecerá um estudo mais além, e então partindo desse pressuposto os cidadãos têm à sua volta uma enorme família de felpas ou farpas ou como quiserem chamá-las, rodeando-os à espreita do momento exato de atacarem, ou melhor, introduzirem-se.

Não há métodos científicos comprovados que auxiliem na expulsão desses seres etéreos, assombrados, não temos como vê-los antes que eles nos vejam, mas aí será tarde demais.

Cuidado com as felpas, se por acaso elas ainda não se introduziram em sua pele, um dia irão fazê-lo. Sempre é bom levar consigo pinça e agulha para eventual ataque de supetão nos locais mais absurdos possíveis.


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