Por Osmar Pedro Calliari*
Há um ditado conhecido de todos que reza (reza?): “o diabo faz a panela,
mas não faz a tampa”. Provavelmente seria melhor colocar a palavra
“geralmente”, no seu início. Senão, vejamos. Sempre vamos encontrar pessoas inusitadas
em lugares inusitados. Lá pelos anos 30 do século passado, em certo povoado
desta região oeste, morava uma comerciante, viúva, proprietária da maior casa
de comércio da vila, um armazém de secos e molhados, armarinhos, cereais, etc.
Comprava e vendia de tudo. Repentinamente apareceu no dito povoado um senhor de
nome Santo Chavon, que de santo só tinha o nome, dizia não temer nada deste
mundo, nem do outro, alto, forte, ruivo, aparência essa que lhe valeu o apelido
de Russo. Trajava sempre uma jaqueta de couro vermelha e, na cintura, seu amigo
inseparável, um Colt 38 preto, que não fazia a mínima questão de esconder ou
disfarçar. Diziam que veio da cidade de Cascalho de Goiás, não por expulso ou
corrido, mas por pedido daquela população, pois que a dita cidade permanecia
estagnada, ao contrário do cemitério, que recebia novos “moradores” toda
semana.
Aqui, Vicentina andava às turras com o Cel. Tertuliano, latifundiário,
criador de gado e produtor de erva mate, que não tinha escrúpulos na hora de
tomar terras ou fazer acertos de contas com o revolver em punho. A encrenca
provinha do fato de Tertuliano se negar a pagar suas dívidas com Vicentina,
alegando que ela errava na hora de fazer as contas. O causo ficou
incontrolável, e houve ameaças recíprocas de morte. Vicentina se adiantou nos
planos e viu, em Russo, um meio seguro de resolver a parada. Entabularam-se as
negociações, mas Russo não queria os três contos de réis ofertados pela
comerciante, e fez sua contraproposta. Nada mais nada menos do que a mão da filha,
única filha de Vicentina, de 16 anos, para casar com ele. Depois de muito
pensar, e sem outra escolha, concordou com a proposta de Chavon, mas já fazendo
outros planos. Chavon, tarimbado, anunciou a todo mundo que estaria viajando
por uns 30 dias a negócios, e desapareceu. Alguns dias depois, Tertuliano foi
morto numa “espera”. Ninguém desconfiou de Russo, pois estava ausente, e porque
o Cel. Tertuliano tinha inúmeros desafetos, que teriam prazerosamente feito
aquela ação, se para tanto tivessem a necessária coragem. Nem de Vicentina, uma
dama, que compareceu constrita, munida de véu preto ao velório, e enxugando
invisíveis ocasionais lágrimas com seu lencinho de renda. No prazo dado para a
volta de Russo, novo estampido seco e forte ecoou e estremeceu as campinas
verdejantes. Acorreu o povo para saber do que se tratava, e encontraram o corpo
de Santo Chavon estirado no chão, atravessado por um projétil de alta potência.
Mas como foi dito no início, o diabo faz a tampa, mas não o cabo, (ou algo
assim) alguns cortadores de erva do falecido Tertuliano avistaram, logo após o
disparo, um belo cavalo fugindo a toda, e juravam que quem o montava usava
saias e delicadas botinas. Foram feitas as devidas diligências e inquéritos,
mas nada de suspeito surgiu contra os moradores da vila. Após o termino da
diligência policial, o delegado, um jovem tenente do exército, convocou
Vicentina para uma conversa em particular. Dona Vicentina estremeceu nas
botinas delicadas, mas disfarçou e procurou manter-se firme. Do que foi dito
naquela conversa nada foi revelado, mas o delegado, antes de empreender seu
regresso, afirmou em alto e bom som: “Não
sabemos por graça de quem, mas em poucos dias nos livramos de dois facínoras
desalmados, que perturbavam o sossego desta região.” Disse isso, mas todos,
inclusive ele, sabiam perfeitamente por graça de quem ambos foram prestar
contas ao fazedor de panelas sem tampas. Pela primeira vez em muitos meses, Dona
Vicentina foi dormir com a consciência tranqüila e a alma feliz. E a filha, já agora
prometida em outro casamento? Nem ficou sabendo de nada, mesmo porque, aos 16
anos, uma garota tem coisas muito mais importantes pra resolver do que perder
tempo com o que se passa nas cabeças ocas dos adultos. É que às vezes o diabo se
compraz em fazer a panela, a tampa, o cabo, e tudo o mais.
*Este e os demais contos da série "Histórias para sempre lembrar" foram escritos por Osmar Pedro Calliari, pai da nossa querida Michele Calliari Marchese. Ele partiu ainda muito cedo, deixando um vazio que jamais poderá ser preenchido. Publicar aqui alguns dos textos que ele deixou escritos é uma forma de homenageá-lo e tê-lo sempre presente, porque enquanto houver memória haverá vida, História e histórias para contar.
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Obrigada comadre! Beijos, Michele
ResponderExcluirTal pai...
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