quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Mantas



Por Helena Frenzel

Como de costume, de manhã, dona Giulia sentou-se na varanda, cobriu as pernas com uma manta colorida e começou a tricotar. Eu, curiosa, sentei-me ao lado dela e também cobri as minhas, pernas, com uma manta bege, que cheirava a roupa limpa. "Foi a senhora quem as fez?", perguntei. "Todas!", ela respondeu. É que já estava frio, era novembro, e por isso mesmo ela queria terminar o que começara antes que chegasse o inverno, ela me disse. De sua varanda via-se as montanhas e dona Giulia, entre um ponto e outro do tricô, se perdia em recordações. "Se ao menos eu tivesse atendido ao seu pedido…"

Para ela, tudo havia começado naquele dia em que um soldado alemão, com uma metralhadora carregadíssima, disse que ali ela não poderia entrar. "Como assim, não posso entrar? É minha casa!", ela ainda quis perguntar, mas achou melhor não. Primeiro porque não sabia falar alemão e segundo porque o soldado parecia nada bem humorado. Ela me disse: "Eu me virei, peguei minha bicicleta caladinha e voltei o quanto antes para o restaurante da minha família, que ficava a poucos metros dali".

Que o povoado estivesse cheio de soldados, isso não era novidade, novo agora era eles começarem a determinar quem podia entrar ou sair de certos lugares, incluindo a própria casa. E foi por isso que as pessoas começaram a se organizar para resistir àquele abuso. Os homens, aqueles que ainda não haviam sido presos ou que não estavam escondidos nas montanhas, não podiam circular à vontade, sempre eram parados por alguma blitz; já as mulheres podiam andar livremente pela cidade e os soldados não as impediam porque alguém precisava fazer o trabalho que elas faziam. Naquele dia, quando o soldado alemão lhe disse "Halt!", que significa "Pare!", alguma coisa começou a ferver dentro de dona Giulia, e também no seio do povo que ali vivia, é que o ponto de resistência havia chegado. Sem pensar nem demorar muito, dona Giulia começou a ajudar os rebelados.

"Eu transportava armas, mantimentos, informações, tudo o que fosse possível com a minha bicicleta. Houve um dia em que eu vinha subindo uma montanha —e nós conhecíamos aquelas montanhas como ninguém, cada pedaço!— quando vi dois soldados alemães se aproximando. E justo naquele dia, no bagageiro da minha bicicleta estava escondida uma pistola que eu estava levando para um grupo de rebeldes. Tratei de me acalmar e não deixar transparecer o medo que me tremulava por dentro. Um dos soldados me perguntou num italiano quebrado: "Da dove vai?". Pensei: "Pense, pense, pense, não deixe o medo saltar, invente uma história", tudo isso eu pensava no ritmo louco do meu coração e foi quando eu disse a primeira coisa que me veio na cabeça, que minha mãe estava muito doente em casa, lá na montanha, e que eu estava apressada porque estava levando remédio para ela, e comecei a chorar. Não sei se por conta das lágrimas ou se porque eu era una bella ragazza, só sei que os soldados baixaram a guarda e me deixaram passar sem blitz. Naquele dia eu tive muita sorte!"

Dona Giulia não contou logo em casa que estava ajudando os rebeldes. O pai e o irmão mais velho, estes ela sabia que a apoiariam, mas a mãe, esta ela tinha certeza que seria até capaz de denunciá-la aos soldados alemães. "Eu não entendia a minha mãe, ela não gostava de gente rebelde, ainda mais de mulheres rebeldes. Eu sempre tive muitos problemas com ela, pois ela queria que eu fosse mansa e eu não conseguia me calar para injustiças. Um dia ela quis que eu lavasse as roupas do meu irmão e eu disse que não lavaria, pois ele é que tinha que lavar as roupas dele, e ninguém lavava as minhas. A resposta dela foi um tapa na minha cara, e aí mesmo foi que eu não lavei mais nada. Ela quis me obrigar, mas meu pai me salvou de suas garras dizendo que também achava muito justo que Nino lavasse as próprias roupas".

Naquele ano de 1944, quando as coisas se complicaram, dona Giulia decidiu se juntar por uns dias aos rebeldes na montanha para aprender a atirar e a montar e desmontar armas. Nesse meio tempo ela já havia contado ao pai e ao irmão o que fazia às escondidas e estes lhe deram todo o apoio. A mãe só soube da rebelião da filha quando esta já estava nas montanhas, escondida, e nada contra pôde fazer. Foi nesse acampamento que dona Giulia conheceu Enzo, um rapaz um pouco mais jovem do que ela e que também estava em treinamento. 

"Enzo lembrava um pouco o meu irmão, mas era muito mais bonito. Ele era muito inteligente e nós conversávamos bastante. Ali nas montanhas não havia divisão entre homens e mulheres, era um lugar e um momento em que todos éramos iguais. Um dia ele me disse que seu maior desejo era ter uma namorada, que nunca havia sequer beijado uma mulher. Foi então que me perguntou se eu queria ser sua namorada e eu, como nunca havia pensado nessas coisas disse que naquele momento não, mas que quando acabasse a guerra se podia voltar ao assunto. No dia seguinte me mandaram voltar para casa, para obter novas informações, mais armas e mantimentos."

A essa altura a mãe fazia de conta que não sabia das atividades da filha, até mesmo porque a situação havia piorado muito, o horror era enorme e ninguém mais aguentava os absurdos daquela guerra sem sentido. Numa noite, veio o pároco visitá-los. Era uma época insuportável e por isso mesmo as pessoas se viam gratas por qualquer oportunidade de estarem juntas. Naquela noite, a mãe de dona Giulia e o pároco começaram a falar mal das mulheres que se juntavam à resistência, que isso não era coisa de mulher direita, que ficavam mal-afamadas e que por conta disso não arrumariam marido. A esse impropério dona Giulia respondeu: "As pessoas que estão lá nas montanhas estão lutando pela liberação da Itália e estão preocupadas com coisas muito mais importantes, como salvar vidas que estão sendo exterminadas nos campos de concentração nazistas. Também estão lutando pelas pessoas que ficam aqui em baixo acomodadas e unicamente preocupadas com a honra e a má-fama das mulheres." E a mãe de dona Giulia não soube o que dizer ao pároco diante daquelas idéias subversivas da filha. Foi também nesta noite que dona Giulia teve um sonho vivo. Sonhou com Enzo tiritando de frio, como se estivesse ferido, gritando seu nome e suplicando um beijo. Ela acordou assustada dizendo: "Já vou, Enzo, já vou!".

"Vinte anos depois foi que fui saber que naquela mesma noite em que o pároco visitou a nossa casa o grupo em que Enzo estava lutando se enfrentou com uns soldados alemães e que ele, baleado, caiu no rio. O corpo dele foi encontrado dias depois, preso por baixo nas raízes de uma árvore em uma das margens. Os companheiros imaginam que ele, ferido, não teve forças para sair dali e acabou morrendo de frio naquele lugar. A guerra acabou oficialmente pra nós no dia 25 de abril de 1945. Depois de algum tempo eu passei a visitar o lugar em que enterraram Enzo. Não tive a chance de dizer a ele que seria muito feliz em ser sua namorada e que se não fossem essas convenções idiotas que aprisionam as pessoas, sobretudo as mulheres, que ele não teria morrido sem ter provado sequer um beijo. E é por isso que eu, a cada ano, tricoto duas mantas. Uma delas é para diluir o meu remorso por não ter atendido imediatamente ao desejo dele, e a outra eu levo para cobrir o túmulo e tentar aplacar a dor e o frio que o tirou de nós ainda tão jovem.“

Saí da casa de dona Giulia naquele dia com duas mantas: uma na sacola, a manta bege que me aqueceu as pernas durante a nossa conversa, e a outra, colorida, bem guardada e aquecida no meu coração idealista.




Fora o desenho geral dos fatos, que se baseiam em histórias da vida real na Itália da Segunda Guerra, todo o resto é ficção.


Nota da autora: como a frase acima ficou um tanto ambígua, explico nesta nota o que nesta história exatamente é derivada de fato real e o que é ficção, pois dar os créditos devidamente é sempre necessário. Dona Giulia é um nome fictício para uma corajosa italiana, cujo nome verdadeiro não recordo, já falecida e que atuou na resistência contra fascistas e nazistas. Tomei conhecimento de sua história por conta de um documentário cujo título não recordo, assistido há muito tempo em algum seminário sobre o papel fundamental das mulheres na resistência italiana, papel ainda hoje não reconhecido devidamente. Os relatos da personagem dona Giulia, no meu texto, correspondem em resumo à história contada pela senhora no documentário, incluindo a sua relação com a família e sua postura e pensamento, já bastante emancipados para os anos 1940. Enzo é um nome fictício para uma pessoa que também existiu na vida real, cujo nome verdadeiro também desconheço, e que viveu e morreu como conta a personagem dona Giulia no meu texto. Os companheiros do verdadeiro Enzo contaram à verdadeira dona Giulia, vinte anos após o fim da Segunda Guerra, como provavelmente ele havia morrido e como encontraram o seu corpo. A única coisa que ela sabia até então era que o  amigo estava entre as vítimas da guerra e onde estava enterrado seu corpo. O encontro entre dona Giulia e a narradora, e o diálogo entre as duas,  é algo que só ocorreu no plano da fantasia da autora.



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