quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O Casamento

Por André Aranha


João acordou com seu pai entrando no quarto fazendo festa e abraçando-o. Ainda tonto pelo sono, não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo até seu pai lhe mostrar o jornal do dia dizendo-lhe que havia sido aprovado para o curso de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Fim do Mundo. Naquela época cada universidade fazia sua própria prova e só haviam três formas de ficar sabendo da aprovação. A primeira era esperar a universidade liberar a lista e lutar contra a muvuca para tentar procurar o nome no meio. A segunda era escutar a lista dos aprovados na rádio universidade, que no fim das contas levava uma eternidade. A terceira e última era esperar a lista sair no jornal da cidade. Desligado como era, não sabia com exatidão quando o resultado sairia.
Na semana seguinte João correu atrás da documentação e fez sua matrícula junto com seu amigo Almeida, que também tinha sido aprovado para o mesmo curso. Os dois estavam empolgados para cursar a disciplina de programação de computadores, área em que ambos já tinham um certo conhecimento, dado um tal de MSX que existia na época. Na verdade foi o MSX que os aproximou. Iam juntos para a universidade. Ter que pegar dois ônibus para chegar lá não os desanimava. Depois de ter conhecido o professor deram uma certa desanimada. Parecia que o professor não tinha uma experiência séria na área. Certo dia depois iam atrasados para aula, pois perderam um tempão mexendo no computador novo de Almeida, um tal de 386 DX com tela SVGA, o top de linha da época que poucos tinham o privilégio de ter. Iam calmamente na caminhada de uns trezentos metros entre o ponto de ônibus dentro da universidade e a sala de aula. Estavam uns cinquenta minutos atrasados de uma aula de uma hora e meia quando Almeida perguntou:
—Quando é a primeira prova de programação de computadores?
João olha pro céu tentando lembrar o dia. Olha para Almeida e responde:
—Puta que pariu, é hoje!
Os dois saem em disparada. Chegaram e só tiveram meia hora para fazer a prova. João conseguiu ainda tirar seis. No fim da disciplina ambos acabaram aprendendo que tinham que responder na prova o que o professor queria ler e não o que a experiência tinha ensinado para eles. Foi assim em várias disciplinas.
Já no último semestre João se candidatou para fazer mestrado em três universidades. Duas em São Paulo (Unicamp e USP) e uma no próprio Fim do Mundo, mas no departamento concorrente de seu curso. Foi aceito nas três, mas decidiu ir para a Unicamp, pois era a mais famosa do Brasil. Vendeu o carro velho que o pai lhe dera durante a graduação e foi para lá com a cara e com a coragem. Lá descobriu que o professor da disciplina deixava apenas as alunas orbitarem à sua volta. Outros corpos celestes eram repelidos com violência. Desanimado, ficou lá só para receber uma ajuda de custo dada pela própria universidade e foi para a USP, universidade que a sua falecida mãe sonhava para o filho.
No primeiro semestre na USP João percebeu como seu curso tinha sido fraco; matemática demais e engenharia de menos. Ralou bastante e no fim do semestre conseguiu uma nota A e duas notas B nas três disciplinas que fez. Nada mal para quem se formou no Fim do Mundo. Também no fim do semestre João se mudou para um apartamento de dois quartos que ficava em frente a USP e que iria dividir com um amigo. Não aproveitou muito o novo apartamento após a mudança porque coincidiu com as férias e foi visitar a família no Fim do Mundo. João não sabia o que o esperava em seu retorno.
Trinta dias depois estava de volta. Quando chegou, seu amigo mencionou a vizinha do andar de cima, mas como tinha namorada não deu muita atenção. Dias passaram e um dia, ao voltar da universidade, encontrou-a conversando com seu amigo no apartamento. João e a vizinha se apresentaram.
—Oi, eu me chamo Débora.
—Prazer. João.
Débora era branquinha, tinha cabelos cacheados e era baixinha. Usava óculos, o que lhe dava um ar de intelectual. Era o que o povo chamava de mignon. Nada foi dito no dia, mas se pudessem olhar um dentro do peito do outro veriam que se atraíram como dois imãs gigantes com polos distintos. Além disso, Débora tinha uma característica ímpar, conseguia cativar facilmente todos ao seu redor. Na verdade era um dom, o qual pouquíssimas pessoas têm.
Resistiram. Tentaram ser amigos, mas assim como um avião só consegue resistir à gravidade enquanto tem combustível, acabaram cedendo. À medida que o tempo passava, a vontade crescia como tinha que ser, já diria Renato Russo. Ao final de dois anos namorando foram morar juntos.
Débora trabalhava durante o dia em um escritório de advocacia. O trabalho era puxado, mas como morava próximo ia sempre almoçar na casa da mãe. Ela cuidava da alimentação. Não com exagero, só não era chegada em comer porcaria. Gostava de comida, e muito. Com isso e com um pouco de ajuda da genética matinha seu belo corpo sempre em forma.
Como João morava no andar de baixo ela sempre passava por lá antes de ir para casa. Certo dia de maio ela entrou no apartamento de João e ele estava conversando com sua mãe. Os dois se davam muito bem. A “sogra” costumava dizer que João era o genro que ela mais amava, e considerando que Débora tinha apenas um irmão, isso não deixava de ser verdade. Débora beijou o namorado e a mãe, como de costume, quando João entregou a ela uma pequena caixa preta com uns dez centímetros de largura. Ela abriu e exclamou:
—Brincos de argolas. Que lindos!
João sorri e lhe diz:
—Olhe direito.
Débora olha a caixinha com mais cuidado. Treme e derruba “os brincos”. Ela os recolhe, pula e ri de alegria. Eram, na verdade, alianças. Enquanto Débora extrapolava sua felicidade, ao lado de João a mãe chorava. Sabia que o “genro” amado iria levar a filha do coração para o Fim do Mundo. Decidiram se casar em menos de um ano. Ele bolsista e ela assistente em um escritório, não tinham muita saúde financeira para bancar um super casamento, mas fizeram o que puderam. Contrataram uma recepção para 50 pessoas: familiares e amigos mais próximos. Pagaram o fotógrafo, a decoração da igreja, a gráfica para os convites, a musicista para a igreja e o vestido da noiva. Quase tudo a prestação. Não tinham riqueza financeira, mas tinham algo muito valioso, amigos, que os ajudaram bastante.
No final do ano em que ficaram noivos os dois foram para o Fim do Mundo. Ela iria finalmente conhecer a família dele. Quando chegou no saguão do aeroporto se sentiu um bichinho de zoológico com muitos olhos a analisá-la. Aos poucos foi se acostumando com o jeito esquisito da família dele. Eles fizeram pressão para adiar o casamento. Diziam que era muito cedo, que João só tinha estudado, que precisava ganhar dinheiro. Até o dia em que João se encheu e disse:
—Vai ter casamento e pronto. Larguem de encher o saco!
Acho que João ganhou alguns pontos com Débora, já que ela própria já estava considerando adiar o casamento. Fora a pressão, como diria Carlos Drummond de Andrade, havia uma pedra no meio do caminho. Na verdade duas pedras. Essas duas criaturas, se pudessem, furariam os olhos de Débora e os sugariam com canudinho. Uma das pedras tentou fazer uma emboscada no casal alegando que queria dar uma surra em Débora. A eficiência da comunicação via molecular (“moleque lá”, para os entendidos) frustrou a ação da dita cuja. A outra pedra usou uma abordagem diferente, eu diria que uma abordagem menos agressiva, porém mais traiçoeira, pois tentou ser sua amiga, mas esperta do jeito que Débora era essa tentativa não deu muito certo.
Ao final de dois meses de aventuras e desventuras no Fim do Mundo, Débora voltou para São Paulo para terminar os últimos preparativos para o casamento que seria no dia 10 de março de 2004. Chegou em casa e contou tudo o que viveu para sua mãe como sempre fazia após ficar algum tempo sem vê-la. As duas se entendiam, eram mãe e filha, eram irmãs, eram amigas. Débora descansou um pouco da viagem e começou os preparativos para o casamento no dia seguinte.

* * *

Chegou o dia. Após um dia de noiva maravilhoso, com maquiagem, cabelereiro e tudo que uma noiva merece, Débora se dirigiu para a igreja no carro de um casal de amigos que conheceu através do futuro marido. Ao chegar na igreja descobre atônita que alguém está faltando. Com o coração acelerado pensa que é o noivo. Para seu alívio descobre que o noivo está lá. Ironicamente, quem está faltando é o padre.
—Ai meu Deus. Cadê o bendito padre?
Não tendo outra alternativa, o carro vai dar umas voltas por São Paulo. Vinte minutos depois ela está de volta. O padre, que havia sofrido um contratempo pela pressão alta, já estava na igreja à sua espera. Débora desce do carro. As portas da igreja se abrem e a marcha nupcial começa a ser tocada. João olha para a porta e se deslumbra com a noiva. “Como ela está linda!”, João pensa consigo mesmo. Débora sorri de orelha a orelha e começa seus passos em direção ao altar ao lado do irmão, que iria entregá-la ao noivo quando lá chegasse. A cerimônia é linda; o padre diz belas palavras de incentivo. Emoções aliadas à música e ao clima de felicidade da igreja levam alguns convidados às lágrimas. A recepção é calorosa e divertida. A comida estava excelente. Os docinhos então, nem se fala. Ao abrir o champanhe um amigo do noivo grita:
—Mira na sogra! Mira na sogra!
Após a cerimônia inesquecível os noivos partem para o hotel onde passariam a noite. Dois dias depois voltariam para o Fim do Mundo, onde o marido seria aprovado em um concurso público. Débora realizaria seu sonho e se formaria em Pedagogia, terminando por dar aulas em uma faculdade particular. Seu marido cresceria na profissão. Ambos compram seu primeiro imóvel. Não era o imóvel dos sonhos, mas era o que podiam comprar. De qualquer forma estavam felizes por finalmente terem seu canto. Algum tempo depois João arrumaria um trabalho na Inglaterra e a levaria para morar em Londres onde Débora aprende inglês. Os dois viajam pela Europa tendo a lua de mel que na época do casamento não puderam ter. Conheceram a França, Portugal, Itália e Alemanha. Na França viveram o romantismo. Em Portugal, a gastronomia. Na Itália foram roubados. E na Alemanha conheceram a encantadora Little Bee, ou abelhinha, que ouvia em Português com atenção, contudo respondia em Alemão. Era o que se chamava de comunicação unidirecional, mas isso não importava de verdade, no final das contas o que importava mesmo era o amor que aquela criaturinha conseguia emanar; nisso a comunicação era nas duas direções, e, ao mesmo tempo. Era o que se chama na engenharia de comunicação de full-duplex. Foram dois anos incríveis que ambos não queriam que acabasse.

* * *

Débora acorda em um quarto branco que não reconhecia. Ao se virar, vê que uma pessoa lê o jornal do dia próximo a sua cabeceira. Débora olha para a data no jornal e lê 10 de março de 2014. Ainda tonta e meio desorientada ela senta na cama. A pessoa que lia o jornal ouve um ruído e olha em sua direção. Era sua mãe. Cambaleante, Débora tenta se levantar. A mãe se aproxima e a abraça. Feliz de estar com a mãe e sentada na cama começa a lhe contar o que viveu no tempo em que não a viu. A mãe ouve tudo em silêncio. No final da história segura a mão de Débora que vê a aliança em seu dedo e imediatamente pergunta:
—Mãe, cadê o João?

A mãe, com um olhar compadecido, pensa se deveria recordar à filha, ou não, que João havia morrido num acidente de avião, justamente quando vinha para o casamento.






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