quarta-feira, 7 de junho de 2017

Uma agulha no coração


Por Michele Calliari Marchese

Quando eu era criança e me deixavam participar de alguma conversa de adulto, ouvi várias vezes a respeito de mulheres que morriam por causa de alguma agulha invasora. Acredito que hoje esse papo é furado.

A conversa era assim: “Você conheceu a Maria Luiza? Não? Morreu. Morreu por causa de uma agulha que ela espetara em sua roupa enquanto cosia alguma coisa e a agulha andou pelo corpo indo parar no coração.”

“Coitada!” Diziam as outras e eu também. Credo em cruz uma agulha percorrer o corpo e parar bem certeira no coração. E toda vez que contavam essa história, porém com protagonistas diferentes, eu perguntava se era aquela mesma que tinham falado no outro dia e me diziam que não, que era outra e lembro-me de ter ficado penalizada com a quantidade de mulheres que morriam em decorrência de agulhas que andavam dentro do corpo.

Doía-me o peito. Juro. Cheguei a questionar minha mãe se eu mesma não tinha uma a andar dentro de mim. Minha mãe com a delicadeza pertinente a todas as mães me dizia: “Mas que bobagem” e seguia rindo pela casa. Eu chorava pensando nisso e ao mesmo tempo achava estranho porque eu costumava costurar roupinhas para minhas bonecas e várias vezes espetei o dedo com aquela maldita, que espera que a gente pisque para entrar em nossas carnes, e ficava apavorada só em pensar no mísero pique doído que recebera um pouco antes e o que dirá entrar no corpo pinicando sem parar o coração? Para não perder a agulha passava-a pela roupa, ora na barriga, ora no peito, epa epa epa no peito não, vai que entra aquele metal pontiagudo matador de mulheres distraídas.

Bom, o fato é que cresci com a ideia fixa de que tinha uma agulha dentro de mim e que dentro em breve bateria as botas e ninguém saberia o porquê.  E continuei escutando conversas desse tipo e ainda piores, muito piores e que não escrevo aqui para não assustar quem está lendo.

Quando me mudei para a Campina da Cascavel nunca mais ouvi conversas desse tipo e calculei que as mulheres que morriam de agulha no coração residiam somente na minha cidade natal. Mas eu jurava que tinha uma e era somente uma questão de tempo.

Não pulava muito nos folguedos de criança para que a agulha não andasse muito rápida e quando eu caía sentia uma dor atroz no coração. Era a agulha! Ninguém sabia desse meu medo infantil e que tinha até tamanho: 4 centímetros. Quatro centímetros! Era muita coisa para um ser do meu tamanho. Deveria estar atravessando as paredes do meu frágil coração e em alguns minutos extinguiria minha consciência e eu finalmente iria para o céu. Todas as mulheres que morrem com agulha no coração vão para o céu. Fiquei bastante tempo deitada esperando ir para o céu quando minha irmã me chamou para jogar no novíssimo vídeo game Odyssey um jogo chamado “Senhor das Trevas”. Como não tinha morrido até aquele momento eu fui jogar.

Passados trinta e tantos anos, nós ainda chamamos um de nossos tios por esse nome de jogo. Mas isso é irrelevante.

Passemos às agulhas invasoras de coração.

Como o tempo traz o esquecimento temporário eu esqueci também – em dias alternados – a dita molestadora do meu coração. Tinha ocupação aquela devastadora de artérias coronarianas. Ou meu coração tinha as paredes tão duras que estava difícil de ela me matar, ou quem sabe, tinha enferrujado e eu estaria com ferro suficiente no organismo para uma futura gravidez, o que de fato confirmou-se muitos anos depois. Deve ter sido isso. Mas naquela época eu não cogitava em ser mãe de modo que esse papo de ferro e ferrugem é balela.

Comecei a trabalhar e o primeiro salário que recebi guardei-o para um belíssimo raio-X. Pedi para a minha mãe ir atrás disso, porque agora eu era uma trabalhadora com uma agulha no peito e também com treze anos eu nada podia e eu tinha que saber se tinha ou não e ela tinha que me ajudar. Porém, com toda aquela delicadeza que só as mães têm, ouvi-a dizer pela enésima vez “quanta bobagem” e rir também pela enésima vez. Gastei o dinheiro num colete de lã bege, muito em voga naquela época e quando cheguei a casa com a sacola da compra eu disse: “pelo menos morro de roupa nova”.

Alguns anos depois escutando o jornal na televisão, tinha uma reportagem que mostrava uma pessoa com uma tesoura dentro do seu corpo. Pelo amor de Deus. A minha agulha de estimação não era nada comparada àquilo, cheguei a pedir perdão para ela, pois era uma presa cativa e eu realmente gostava dela e de todos os momentos que passamos juntas.

Tive que fazer vinte e um para poder finalmente fazer o bendito do raio-X.

Claro que não havia nada além dos ossos e tive que me despedir friamente de minha amiga imaginária. Ou não.








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