Por
Helena Frenzel
Na maior
parte do tempo te acusavas de falar demasiado. Teu problema, no entanto, sempre
foi ouvir demais. Eram vozes, muitas vozes, miríades, caos; muito barulho em
tua cabeça, confusão mental era tua queixa-mor. Não sei quantas vezes te vi
rolar pelo chão e encaracolar-te buscando um canto. Era evidente o tanto que
precisavas de silêncio, nem o ar parecia te ser mais necessário do que aquela
pretensa paz, buscada a cabeçadas nas paredes, para depois, o torpor.
Tantas
vezes testemunhei como tentaste prescindir da vida e dos ruídos, da existência
e da razão. E tinhas razão! Era necessário que tu, que demonstravas querer
calar todas as vozes, incluindo a tua, que tu, que tentavas aquietar sem dizer
mais nada, que tu...
Bem, algo
seguia movendo tua mandíbula, obrigando-te à produção de surdos sons
semânticos, pragmáticos, esses sons e barulhos, burburinho e ruídos, esses
gritos que nasciam de desabafos e refletiam a tua tão somente tua resignação ao prático, tudo incluído no teu “sim”
de todos os dias e algo que te obrigava a ele. A vida, o sustento à família?,
me pergunto. Fosse o que fosse, era sempre algo externo, sempre algo para já,
quem sabe uma doença dessas dos tempos maus modernos, vá saber...
“Se é
loucura ouvir vozes”, te perguntavas. Não. “Obedecê-las ao ouvi-las, isso sim,
seria” e era o que proclamavas porque era o mais sensato e a manifestação de um
espírito livre, tudo aquilo que tu não és.
Sempre
haverá alguém para distribuir ordens, ordens e conselhos não pedidos, ordens e
conselhos não solicitados e opiniões, ordens, conselhos não desejados, críticas
sem construção e opiniões vazias, coisas que não pediste nem precisas,
artefatos comprados com dinheiro mal-lavado, sem os quais podias viver, ou
poderias, e em meio a esse clima ela ainda achou de vir à tua casa, não bastou
ter telefonado pela manhã.
E veio
com aquele risinho debochado, com aquela arrogância tão comum de insensíveis
mercenários, com aquela expressão não só de estar, porém de achar-se ser mais e
melhor. Entrou com o queixo erguido pois tinha as chaves, seguiu com o nariz
por cima, olhando por baixo dos cílios, pintados, registrando a desordem do
local. Se não havia ordem em tua cabeça como porias ordem em teu espaço?
Bobagem, não? Ela parou no meio da sala e girou nos calcanhares sobre finos
saltos de marca; o piso de tacos protestou e não foi o único, um dos
companheiros tapou os ouvidos para evitar aquele ruído de unhas riscando
quadros de colégios muito antigos, coisas de anos atrás. E ela olhou para ti fazendo
um bico de nojo, como quem diz: “O inferno é mais limpo que este teu cubículo!”
e não reagiste. Vestia um casaco de peles, talvez autêntico porque era má, e era inverno,
trazia os braços colados ao corpo, como temendo qualquer contato e uma certa
contaminação com teu espaço. Abriu a boca e disse: “Eu, em teu lugar...” e com
um olhar de falsa pena e polidez muito treinada continuou o discurso, o que te
tirou do sério e fez tapar os ouvidos, suplicando em fracos gemidos que te
deixasse em paz. Tua boca se movia como se estivesses protagonizando um filme
mudo, nenhum som inteligível saía com força de ti, mas era claro que
gritavas mudamente, tinhas uma expressão transparente de dor. Era
como se dissesses: “Tu, em meu lugar, não farias nada disso! Tu, em meu lugar,
não obrigarias ninguém a nada! Não era a tua boca a que eles maculavam, não era
o teu corpo que deixaria de ser teu, abandonado pela alma no inferno desses
momentos.”
Foi
grande o teu desespero ao notar que nada a faria calar e tua cabeça parecia
latejar no ritmo alucinante que teu corpo denunciou, em tremores. Os tacos
gemeram sob teus pés nervosos, tapaste os ouvidos com as mãos em concha e deste
com a testa na parede, tantas e tantas vezes até que te viraste e tomaste o
vaso e... quebraste o espelho, e lá perdemos o primeiro plano.
“E não
sejas dramática!”, ela exclamou com voz camuflada de compreensão. Temi até que
seriamente te machucasses. Há tempos havíamos notado que não existia um só
quadro em todo o teu apartamento, isso logo me chamou a atenção, não havia em
teu cubículo nada pessoal, tu tentas não deixar marcas, buscas tão somente
existir sem cultivar nada, mas tuas crises denunciaram teu forte desejo de
pedir ajuda. Tu sofrias e eu —acreditas?—, sofria contigo. Eu sofria, mas não
podia me intrometer, não ainda. Nada neste mundo, neste país e neste cubículo,
nada dentro de ti seria capaz de remeter-te ao vazio que poderia salvar-te, isto
disseste uma vez, lembras?
Mas não,
tu não a ouvias e ela seguia, e assim seguiram naquele crepúsculo. Ela, com as
cobranças e a narrativa porque diálogo em que um só fala não é diálogo, porque
ouvir perde o sentido e o tato e o cheiro e o paladar, sem falar da vista. A um
cego não passaria despercebida a tua dor, mas a ela, a cega que tanto via e
sempre tinha razão e tudo sabia melhor, ela não perceberia jamais...
“E
ventila este quarto e abre a janela e deixa de fraqueza, e reage e te maquia,
corta o cabelo e te veste melhor, e te move e te mexe e faz o que eles quiserem
porque eles mandam e não tens que reclamar, e telefona e me conta e pede
instruções e me deixa saber de tudo e deixo aqui dinheiro para as despesas e o
contrato, pois sei que tu consegues, e aproveita a chance e compra um perfume
caro porque eles querem uma Barbie. A geladeira está vazia e não digas que me
equivoco, ou queres dormir na rua? É muito frio, eu em teu lugar...”
“Não!”,
desta vez gritaste. Parecia haver vozes, muitas vozes em tua cabeça, não é
verdade? E ela seguia com mais sugestões: “Aprende a fazer yoga, que melhora a
circulação, e pilates, que ensina a respirar e mantém o corpo esguio e...” “Há
quanto tempo não respiro?”, gritaste tentando interrompê-la uma vez mais. Há
quanto tempo não saías para caminhar e tomar ar puro? “Sei que as veredas me
salvarão”, continuaste e eu completei: “Porque
o bosque salva as almas da perdição de homens e mulheres, de maridos traídos e
de filhas sem pai nem mãe e dos ruídos e da resignação aos superiores e do medo
de todos os modos, físicos e psicológicos e, o mais importante: produz tempo
para pensar, mas, para pensar, antes, era preciso calar as vozes!” Meus
companheiros, neste momento, me olharam estarrecidos e se preocuparam, tão
grande era a nossa conexão, a minha contigo. Podias sentir-me?
Ela te
ignorou e, num surto, ou numa overdose de coragem, não hesitaste e tiveste a
ação de, em frente à lareira, virar-te e pegar o ferro e usá-lo, primeiro
batendo nos ombros para desviar as tentativas de defesa dos braços e jogá-la
contra a parede, feito uma aranha, depois empurrando com força, em giro, bem no
estômago ou bem no coração, com uma força que eu não imaginava que tinhas em ti e cheguei a sentir
o ferro vencer a resistência das carnes e sair diagonal do outro lado, forte e vermelho
como o sol que se punha lá fora e anunciava bom tempo para o dia seguinte.
Cessou o
grito. Por alguns segundos ficaste parada, o cabo do ferro em tuas mãos. Então
soltaste o cabo e foram as duas desabando, ela sobre o tapete, sujando a parede
de sangue e tu, sobre o sofá.
Ficamos
petrificados com a tua performance e, embora acostumados a coisas horríveis,
surpreendeu-nos tua reação, te juro. Há uma câmera sobre tua porta, uma câmera
guardiã, como chamamos, vês?
Teu
destino era o ouvir e não o falar, era obedecer sem questionar, mas as vozes
tiraram tua sanidade e num segundo tudo transbordou, como sempre transborda. Se não
sabes o que te moveu de fato, nós tampouco.
Olhavas o
tapete por entre os dedos, com os quais tentavas inutilmente tapar teus olhos,
boca e ouvidos, como num tipo de máscara de tortura. Passaste um bom tempo
muito quieta, parecias não saber o que fizeste, fitavas o rio vermelho criando
afluentes no tapete branco naquela sala alugada a seiscentos por mês. Claro que
nos informamos também do preço e da vizinhança, quem pensas que somos?
Fitavas a
cara dela sem vida, retorcida num grito sem expressão. Tudo nela era postiço,
dos seios aos cílios, das unhas ao sorriso, do amor à proteção. “Talvez me
invejasse”, chegaste a murmurar, “quem sabe odiasse até”. Estou contigo
nesta tese.
E em
poucos minutos testemunhamos que um sentimento prático moveu-te a enrolar no
tapete o cadáver e a acender a lareira e a esconder nas brasas evidências e o
ferro, a livrar-te de uma vez por todas das ordens, das ordens e conselhos não
pedidos, das ordens e conselhos e opiniões, das ordens, conselhos, críticas e
opiniões vazias, de tudo o que não pediste nem precisas, artefatos sem os quais
podias viver, ou poderias, e em meio a esse clima foste até a cozinha e
apanhaste os sacos e os panos e os baldes e o rodo e a fita adesiva e deste
graças ao fato dela ser mignon. Como alguém tão miúdo podia ser tão sem escrúpulos? Isso nos perguntamos também nós. Os melhores perfumes nos mínimos
frascos? Não, o cheiro que emanava dela era enxofre puro, disseste uma vez.
Talvez tivesses apenas imaginado, mas...
Ao
término do trabalho já não havia luz lá fora, esperarias a madrugada para pegar
o carrinho de compras e descer até a garagem, tapetes persa estavam em promoção
e eram apreciados no mercado das pulgas, o bosque não estava tão distante e...
Bom, disto sabemos porque um de nós já esperava lá fora, esperava desde o
momento em que ela entrou. De volta ao apartamento, teu problema seguia sendo o
que fazer com as vozes que te assolavam, não? E quando, ao menos
momentaneamente, haviam calado as ordens, ligaste o som e te puseste a ouvir
Ravel.
Não me
olhes com espanto... Sou erudito porque cursei artes cênicas antes de fazer o
que faço agora, os colegas não me estranham mais, a vida dá voltas e esse é o
meu tom natural: cínico, distante? Não, fato é que depois de Ravel baixaste a tela
do laptop, nosso terceiro plano, e não pudemos ver o que fizeste depois, mas o
que tínhamos gravado nos bastou e não quisemos esperar o próximo crepúsculo
para procurar-te e fazer a proposta. Como vês, não te denunciamos nem vamos
denunciar, ela era um ser humano desprezível, então fica elas por elas. Ocorre que tua clientela vale muito e estamos certos
de que podemos negociar.
Tentar o
suicídio é bobagem, moça, sei que queres a vida, só precisas de alguém que te
tire deste lamaçal, podemos ajudar-te e isso eu garanto. Eu, em teu lugar,
pensaria melhor... Afinal, liberdade é um lenço muito fino, quase invisível, e
que vive passando de mãos em mãos, não concordas? Tão fino que chega a
confundir-se com cordas, cordas que nas costas nos dão, ou enforcam... Vivemos
nas sombras e ouvimos até as vozes em tua cabeça, quem
acreditaria que existimos? Mas uma coisa te digo: estás sempre livre para escolher.
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