quarta-feira, 17 de maio de 2017

Um rosto só


Por Michele Calliari Marchese

Quando entrou no restaurante tinha a desgraça estampada no rosto. Fundas olheiras; uma perda, um desagravo, alguma doença, nunca ninguém saberá. Caminhava com a cabeça baixa para não cumprimentar ninguém mesmo que havia pessoas conhecidas olhando-a para cumprimenta-la e então passou num vento gélido de morte a pensar se comeria ou se fugiria resignada à fome, se tivesse fome.

Pegou o prato como se salvasse algo ou alguém, mal olhou para a atendente ao seu lado que a cumprimentava com seu mais lindo sorriso e pegou a salada com um suspiro de alheamento como se o seu corpo tivesse atitudes as quais ela jamais teria em sã consciência. Era uma cena triste vê-la servindo-se de tomates tenros e vermelhos, maduros como a vida dela, porém vivos, numa contradição com aquelas mãos trêmulas, talvez do frio que os pegavam, eram mãos brancas com as veias muito aparentes e azuladas dando uma impressão de que a qualquer momento cairia ali desfalecendo imediatamente com seus tomates que jamais seriam comidos.

Serviu-se um pouco aqui e outro pouco acolá sem nunca levantar a cabeça de mulher sofrida e saiu do Buffet indo parar na primeira mesa vaga que tinha por ali. Suspirou outras dez vezes mais antes de pegar o saleiro e enquanto salgava a comida estava a ponto de chorar desconsoladamente e a mão que repousava na mesa foi parar em sua cabeça num assomo lógico de espantar os pensamentos que lhe impediam de olhar para os outros. O que afinal fazia ali? Por que se servira? Nem gostava de tomates e por que pegara?

Tinha na mente mil resoluções, talvez, mil iniciativas ou a morte iminente.

Salgou demais enquanto engolia o choro e aquela compulsão em chacoalhar o saleiro a fez olhar para o lado como a pensar no que fizera e porque fizera, tinha tanto na vida e não conseguia ser feliz, mesmo com os tomates salgados à sua frente numa disposição ímpar, um ao lado do outro, tudo separado, tudo no seu lugar e ela ali prostrada com a falta de alegrias em seu viver.

Pediu água e teve que repetir três vezes, pois o garçom não a escutava naquele sussurro de convalescente falando ao prato e jamais ao garçom. Tomou um gole daquela água e remexeu em seu arroz, tão sozinho, tão separado dos outros e talvez ela estivesse contando os grãos ou pensando no cachorrinho que havia deixado dentro do carro para almoçar.

As olheiras ficaram mais profundas ainda quando um homem sentou à sua frente. Grossas lágrimas banharam seus olhos escuros e sem viço, porém foram apanhadas pelo guardanapo numa rapidez de desgraça.

Não o cumprimentou, seriam as dores do amor? Seriam as dores de uma partida? Seriam somente as dores por aquele homem que se sentara a sua frente com o prato lauto sem salgar, tudo misturado e sendo engolido vorazmente pela fome atrasada e que sequer notara que a mulher à sua frente enxugara os olhos com o guardanapo e ainda não tinha comido nada. Ele lhe piscou como fazem os amantes de uma vida e bem poderia ter sido um recomeçar e ela ensaiou um pequeno sorriso e olhou para cima como a pensar na impertinência daquele ser esfomeado que cumprimentava todo mundo e não perdia nada do que se passava ao redor, mas não à sua frente, pois o guardanapo molhado e dobrado cuidadosamente num canto da mesa lhe pareceu apenas o que era e nada mais.

Talvez essa discrepância entre o piscar de olho e o guardanapo no canto da mesa a fez cortar enfim os tomates.

Não trocaram uma palavra durante o almoço, mas ele buscou um pratinho de sobremesa para ela e ficou esperando o “muito obrigada” que nunca saiu daquela boca retorcida de dor e abatimento. Decerto que sofria tanto que seu corpo esqueceu-se das boas maneiras, ou quem sabe já tinha dito tantos “muito obrigada” àquele homem que agora era totalmente desnecessário dizê-lo assim naquele silêncio entre as piscadas, os risos e o bater de talheres dele. Jamais entenderia o guardanapo molhado no canto da mesa ou o cachorrinho dentro do carro e também os tomates em seu prato. Jamais olharia para as suas olheiras profundas das noites mal dormidas ou do choro sufocado na garganta, e tudo isso talvez porque ela nunca em sua vida chamou a atenção para esses pequenos detalhes mortíferos, venenosos e sem volta.

Saíram os dois juntos e de mãos dadas do restaurante, ele dando adeus a todos, ela de cabeça baixa como a querer fugir dali para sempre, da vida dele, daquele cachorrinho que latia abanando a cauda no banco do frente do carro, dos milhares de guardanapos molhados e cuidadosamente dobrados amontoando-se na desgraça dos cantos da sua vida.

Decerto que chorou muito ao chegar a casa. Talvez tenha vomitado as metades dos tomates vermelhos e tenha gastado muito tempo em retocar a maquiagem da infelicidade.


Talvez ela tenha dito “muito obrigada” àquele homem que lhe piscava ou talvez nunca o faria e ele continuaria a lhe piscar nos arroubos da paixão.



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