Por Michele Calliari Marchese
Quando entrou no
restaurante tinha a desgraça estampada no rosto. Fundas olheiras; uma perda, um
desagravo, alguma doença, nunca ninguém saberá. Caminhava com a cabeça baixa
para não cumprimentar ninguém mesmo que havia pessoas conhecidas olhando-a para
cumprimenta-la e então passou num vento gélido de morte a pensar se comeria ou
se fugiria resignada à fome, se tivesse fome.
Pegou o prato como
se salvasse algo ou alguém, mal olhou para a atendente ao seu lado que a
cumprimentava com seu mais lindo sorriso e pegou a salada com um suspiro de
alheamento como se o seu corpo tivesse atitudes as quais ela jamais teria em sã
consciência. Era uma cena triste vê-la servindo-se de tomates tenros e
vermelhos, maduros como a vida dela, porém vivos, numa contradição com aquelas
mãos trêmulas, talvez do frio que os pegavam, eram mãos brancas com as veias
muito aparentes e azuladas dando uma impressão de que a qualquer momento cairia
ali desfalecendo imediatamente com seus tomates que jamais seriam comidos.
Serviu-se um pouco
aqui e outro pouco acolá sem nunca levantar a cabeça de mulher sofrida e saiu
do Buffet indo parar na primeira mesa vaga que tinha por ali. Suspirou outras
dez vezes mais antes de pegar o saleiro e enquanto salgava a comida estava a
ponto de chorar desconsoladamente e a mão que repousava na mesa foi parar em
sua cabeça num assomo lógico de espantar os pensamentos que lhe impediam de
olhar para os outros. O que afinal fazia ali? Por que se servira? Nem gostava
de tomates e por que pegara?
Tinha na mente mil
resoluções, talvez, mil iniciativas ou a morte iminente.
Salgou demais
enquanto engolia o choro e aquela compulsão em chacoalhar o saleiro a fez olhar
para o lado como a pensar no que fizera e porque fizera, tinha tanto na vida e
não conseguia ser feliz, mesmo com os tomates salgados à sua frente numa
disposição ímpar, um ao lado do outro, tudo separado, tudo no seu lugar e ela
ali prostrada com a falta de alegrias em seu viver.
Pediu água e teve
que repetir três vezes, pois o garçom não a escutava naquele sussurro de
convalescente falando ao prato e jamais ao garçom. Tomou um gole daquela água e
remexeu em seu arroz, tão sozinho, tão separado dos outros e talvez ela
estivesse contando os grãos ou pensando no cachorrinho que havia deixado dentro
do carro para almoçar.
As olheiras ficaram
mais profundas ainda quando um homem sentou à sua frente. Grossas lágrimas
banharam seus olhos escuros e sem viço, porém foram apanhadas pelo guardanapo
numa rapidez de desgraça.
Não o cumprimentou,
seriam as dores do amor? Seriam as dores de uma partida? Seriam somente as
dores por aquele homem que se sentara a sua frente com o prato lauto sem salgar,
tudo misturado e sendo engolido vorazmente pela fome atrasada e que sequer notara
que a mulher à sua frente enxugara os olhos com o guardanapo e ainda não tinha
comido nada. Ele lhe piscou como fazem os amantes de uma vida e bem poderia ter
sido um recomeçar e ela ensaiou um pequeno sorriso e olhou para cima como a
pensar na impertinência daquele ser esfomeado que cumprimentava todo mundo e
não perdia nada do que se passava ao redor, mas não à sua frente, pois o
guardanapo molhado e dobrado cuidadosamente num canto da mesa lhe pareceu
apenas o que era e nada mais.
Talvez essa
discrepância entre o piscar de olho e o guardanapo no canto da mesa a fez
cortar enfim os tomates.
Não trocaram uma
palavra durante o almoço, mas ele buscou um pratinho de sobremesa para ela e
ficou esperando o “muito obrigada” que nunca saiu daquela boca retorcida de dor
e abatimento. Decerto que sofria tanto que seu corpo esqueceu-se das boas
maneiras, ou quem sabe já tinha dito tantos “muito obrigada” àquele homem que
agora era totalmente desnecessário dizê-lo assim naquele silêncio entre as
piscadas, os risos e o bater de talheres dele. Jamais entenderia o guardanapo
molhado no canto da mesa ou o cachorrinho dentro do carro e também os tomates
em seu prato. Jamais olharia para as suas olheiras profundas das noites mal
dormidas ou do choro sufocado na garganta, e tudo isso talvez porque ela nunca
em sua vida chamou a atenção para esses pequenos detalhes mortíferos, venenosos
e sem volta.
Saíram os dois
juntos e de mãos dadas do restaurante, ele dando adeus a todos, ela de cabeça
baixa como a querer fugir dali para sempre, da vida dele, daquele cachorrinho
que latia abanando a cauda no banco do frente do carro, dos milhares de
guardanapos molhados e cuidadosamente dobrados amontoando-se na desgraça dos
cantos da sua vida.
Decerto que chorou
muito ao chegar a casa. Talvez tenha vomitado as metades dos tomates vermelhos
e tenha gastado muito tempo em retocar a maquiagem da infelicidade.
Talvez ela tenha
dito “muito obrigada” àquele homem que lhe piscava ou talvez nunca o faria e
ele continuaria a lhe piscar nos arroubos da paixão.
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