quarta-feira, 31 de maio de 2017

Quem descobriu a Campina da Cascavel?


Por Michele Calliari Marchese

Estive às voltas com o livro “1434” de Gavin Menzies. Além de recomendar a leitura, recomendo que abram a mente antes de ler, pois a infinidade de explicações complexas sobre como os chineses descobriram as latitudes e longitudes para nortearem-se ao mar é de tirar o fôlego.

Uma das coisas mais impressionantes é a riqueza dos detalhes cartográficos chineses e de como, naqueles tempos, os únicos que sabiam que a terra era redonda eram eles, elaborando um minucioso mapa múndi, redondo, é lógico, para presentear os soberanos europeus em troca de alguns míseros trocadinhos anuais. Coisa impensável nos dias de hoje.

Lá, naqueles lindíssimos mapas, aparece nosso país, cujo nome europeizado era “Brazilis”. Então Ilha de Vera Cruz, Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz do Brasil e etc., que, segundo o livro, é tudo invencionice de Portugal para dizer que conseguiram descobrir alguma coisa. Estão tentando modificar a história mundial dentro em breve e torço para que consigam logo, para que as próximas gerações saibam a verdade sobre os descobrimentos.

Dentro da fertilidade da minha massa cinzenta ousaria dizer e afirmar que a Campina da Cascavel também foi descoberta pelos chineses lá pelos idos de 1313 quando a frota do impiedoso Zeng He já circunavegava os mares. Creio que uma de suas embarcações sofreu com algum cataclismo exacerbado e impossível, fazendo com que ondas de mais de mil metros de altura e velocidades enfartantes erguessem a nau chinesa, fazendo com que o junco chegasse são e salvo aqui, na Campina da Cascavel. Esse imenso navio que abrigava mais de três mil homens e outro tanto de concubinas aportou ali, próximo à Femi.

Ficaram deveras extasiados com a natureza nauseante de nossos lindos bosques e terras produtivas. Desmancharam a nau para construírem casas, pois sabiam de antemão que se encontravam a quilômetros e quilômetros de distância do mar e naquela época não existia celular para pedirem socorro. Em seguida executaram os funerais tradicionais daqueles mortos em combate com o mar ou que não resistiram à dura empreitada de serem arremessados cruelmente por sobre imensidões de terra. Foram dias tristes.

Porém, como todo mundo sabe, as cascavéis da Campina da Cascavel mostraram suas pegajosas e venenosas entranhas naquele universo chinês abortado sem dó nem piedade para levar outros tantos homens e mulheres para morrerem à míngua. E elas sumiram depois de picarem essa gente estranha e alheia; eu, particularmente, nunca vi uma por aqui ou soube do aparecimento de alguma. Creio que elas duraram até o aparecimento dos índios que aqui se instalaram.

Os chineses remanescentes tomaram por esposas as concubinas destinadas aos soberanos europeus para constituírem famílias, porém acredito que muitos entre si eram parentes e assim sendo as relações eram estéreis.

Com os mortos no imbróglio e outros por veneno, outros ainda por disputas internas de poder e mulheres, foram-se matando um a um, chegando talvez a uma população de no máximo trezentas pessoas. Os juncos apodreceram no primeiro dilúvio que registraram em seus diários de papiro, porque infelizmente eles não conheciam as intempéries de nossa cidade e não basta ser chinês, tem que ter brio para viver aqui. Os poucos filhos nascidos dessas relações morriam em seguida por não terem condições de alimentação; seus víveres de outrora foram arremessados pelo vento inclemente de um dos primeiros vendavais que eles presenciaram agarrados e amarrados em tocos de árvores para não saírem voando e tenho certeza que muitos deles se aventuraram nesse pormenor, achando que a velocidade daquele vento os levaria de volta à pátria amada. Nunca se soube deles, se chegaram ou não ou se caíram por terra em Abelardo Luz ou Bom Jesus.

Muitos anos depois a população estaria reduzida a míseros vinte capacitados para viver nesse solo primaveril utilizando-se de tudo o que encontravam para poder sobreviver e tinham – tenho a certeza – dentro de si a calma e tranquila esperança de serem encontrados algum dia por algum forasteiro conquistador e explorador, podendo ser de qualquer nacionalidade, já que naquela altura do campeonato os borrachudos deixavam chagas purulentas que não tinha espaço para predileções de salvamento.

Nesse ínterim aparecem os caingangues, bravos guerreiros indígenas que chegaram chegando, empunhando machadinhas e pedras pontudas gritando num dialeto inverossímil que se rendessem em paz, matando primeiramente as cascavéis depois esfumaçaram com um pestilento remédio os borrachudos e fincaram o primeiro pau da oca bem onde o junco antes altivo e predador havia atracado por algum motivo que nenhum dos sobreviventes lembrava mais e nem tinham como dizer isso para aqueles selvagens que pinicavam suas costas para fazê-los reféns e por fim, incorporaram-nos à aldeia.

É isso. E é esse triste presságio secular que nos tirou dos mapas múndis em 1400 e onde antevejo em sonho e em letras góticas, pontuando na cartografia o que jamais aconteceria: “Ultimum Refugium Venenata”, referindo-se à nossa gloriosa Campina da Cascavel.



© 2017 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a). 

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Um rosto só


Por Michele Calliari Marchese

Quando entrou no restaurante tinha a desgraça estampada no rosto. Fundas olheiras; uma perda, um desagravo, alguma doença, nunca ninguém saberá. Caminhava com a cabeça baixa para não cumprimentar ninguém mesmo que havia pessoas conhecidas olhando-a para cumprimenta-la e então passou num vento gélido de morte a pensar se comeria ou se fugiria resignada à fome, se tivesse fome.

Pegou o prato como se salvasse algo ou alguém, mal olhou para a atendente ao seu lado que a cumprimentava com seu mais lindo sorriso e pegou a salada com um suspiro de alheamento como se o seu corpo tivesse atitudes as quais ela jamais teria em sã consciência. Era uma cena triste vê-la servindo-se de tomates tenros e vermelhos, maduros como a vida dela, porém vivos, numa contradição com aquelas mãos trêmulas, talvez do frio que os pegavam, eram mãos brancas com as veias muito aparentes e azuladas dando uma impressão de que a qualquer momento cairia ali desfalecendo imediatamente com seus tomates que jamais seriam comidos.

Serviu-se um pouco aqui e outro pouco acolá sem nunca levantar a cabeça de mulher sofrida e saiu do Buffet indo parar na primeira mesa vaga que tinha por ali. Suspirou outras dez vezes mais antes de pegar o saleiro e enquanto salgava a comida estava a ponto de chorar desconsoladamente e a mão que repousava na mesa foi parar em sua cabeça num assomo lógico de espantar os pensamentos que lhe impediam de olhar para os outros. O que afinal fazia ali? Por que se servira? Nem gostava de tomates e por que pegara?

Tinha na mente mil resoluções, talvez, mil iniciativas ou a morte iminente.

Salgou demais enquanto engolia o choro e aquela compulsão em chacoalhar o saleiro a fez olhar para o lado como a pensar no que fizera e porque fizera, tinha tanto na vida e não conseguia ser feliz, mesmo com os tomates salgados à sua frente numa disposição ímpar, um ao lado do outro, tudo separado, tudo no seu lugar e ela ali prostrada com a falta de alegrias em seu viver.

Pediu água e teve que repetir três vezes, pois o garçom não a escutava naquele sussurro de convalescente falando ao prato e jamais ao garçom. Tomou um gole daquela água e remexeu em seu arroz, tão sozinho, tão separado dos outros e talvez ela estivesse contando os grãos ou pensando no cachorrinho que havia deixado dentro do carro para almoçar.

As olheiras ficaram mais profundas ainda quando um homem sentou à sua frente. Grossas lágrimas banharam seus olhos escuros e sem viço, porém foram apanhadas pelo guardanapo numa rapidez de desgraça.

Não o cumprimentou, seriam as dores do amor? Seriam as dores de uma partida? Seriam somente as dores por aquele homem que se sentara a sua frente com o prato lauto sem salgar, tudo misturado e sendo engolido vorazmente pela fome atrasada e que sequer notara que a mulher à sua frente enxugara os olhos com o guardanapo e ainda não tinha comido nada. Ele lhe piscou como fazem os amantes de uma vida e bem poderia ter sido um recomeçar e ela ensaiou um pequeno sorriso e olhou para cima como a pensar na impertinência daquele ser esfomeado que cumprimentava todo mundo e não perdia nada do que se passava ao redor, mas não à sua frente, pois o guardanapo molhado e dobrado cuidadosamente num canto da mesa lhe pareceu apenas o que era e nada mais.

Talvez essa discrepância entre o piscar de olho e o guardanapo no canto da mesa a fez cortar enfim os tomates.

Não trocaram uma palavra durante o almoço, mas ele buscou um pratinho de sobremesa para ela e ficou esperando o “muito obrigada” que nunca saiu daquela boca retorcida de dor e abatimento. Decerto que sofria tanto que seu corpo esqueceu-se das boas maneiras, ou quem sabe já tinha dito tantos “muito obrigada” àquele homem que agora era totalmente desnecessário dizê-lo assim naquele silêncio entre as piscadas, os risos e o bater de talheres dele. Jamais entenderia o guardanapo molhado no canto da mesa ou o cachorrinho dentro do carro e também os tomates em seu prato. Jamais olharia para as suas olheiras profundas das noites mal dormidas ou do choro sufocado na garganta, e tudo isso talvez porque ela nunca em sua vida chamou a atenção para esses pequenos detalhes mortíferos, venenosos e sem volta.

Saíram os dois juntos e de mãos dadas do restaurante, ele dando adeus a todos, ela de cabeça baixa como a querer fugir dali para sempre, da vida dele, daquele cachorrinho que latia abanando a cauda no banco do frente do carro, dos milhares de guardanapos molhados e cuidadosamente dobrados amontoando-se na desgraça dos cantos da sua vida.

Decerto que chorou muito ao chegar a casa. Talvez tenha vomitado as metades dos tomates vermelhos e tenha gastado muito tempo em retocar a maquiagem da infelicidade.


Talvez ela tenha dito “muito obrigada” àquele homem que lhe piscava ou talvez nunca o faria e ele continuaria a lhe piscar nos arroubos da paixão.



© 2017 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a). 

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Um jogo e nada mais

Por Michele Calliari Marchese

Saíra com as amigas para um lanche, porém uma delas propôs a ida ao ginásio de esportes onde aconteceria a final de futebol no campeonato municipal. Foi a contra gosto, pois jogos de futebol não eram o tipo de entretenimento de que gostava e pensando no assento frio de cimento a lhe congelar os ossos suspirou numa negativa veemente que não foi aceita em hipótese alguma pelas outras. “Vamos lá, então”, disse ela numa resignação de dependente sofrida.

Sentou no piso de cimento muito frio enquanto as outras riam os risos da felicidade e então entrou em campo o time para o qual iriam torcer e suas amigas levantaram num ímpeto a saudar os competidores e ela olhou – sentada – pasma que quem jogava era um namorico da amiga e entendera o óbvio. Olhara também a camisa dezessete e quem a vestia. Quem era aquele, pensou e pensou também que o mínimo que poderia fazer era bater palmas se eles marcassem algum gol, se marcassem.

O camisa dezessete se posicionou em campo e o namorado da amiga acenava para ela do banco de reservas, decerto nem jogaria e aquela apaixonada estava ali a torcer para um jogador sentado. Seriam os minutos mais longos de sua vida, passando frio e tiritando os joelhos numa posição incômoda e ainda com fome. Nem deveria ter saído de casa e numa roubada de bola o camisa dezessete a olhou. Assim, de relance, durante o lance, muito rápido e ela virou-se para trás para encontrar a destinatária daquele olhar duro, de homem que observa tudo, e não havia vivalma atrás de si, pois sentaram nos fundos, encostadas à parede. Ficou inerte com a surpresa.

Endireitou o corpo e prestou um pouco mais de atenção ao jogo e não aos vendedores de lanches que insistentemente passavam por ali e o camisa dezessete marcou um gol que a fez bater as palmas que tinha se proposto e quando ele abraçou os colegas olhou para ela novamente. Muito rápido, um olhar penetrante e se ela tivesse piscado jamais saberia que ele a tinha visto.

Ficou cuidando para que não fosse algum afeto das outras amigas e aquele número dezessete pipocava dançando o jogo à sua frente e a olhava muito rapidamente como se ela fosse parte daquele jogo de quadra, que estava ali participando com ele numa vida partilhada há tempos. Pigarreou e pediu os nomes dos jogadores para aquela namorada cujo jogador estava apoiado no cotovelo sentado no banco de reservas e ela foi numerando e nomeando cada um e não disse quem era o camisa dezessete. “Não sei, não conheço”.

Acabou o primeiro tempo e iria ao banheiro, pois com aquele piso frio não havia bexiga quente que aguentasse mais cinco minutos, e porque não saíra antes, pensou, que graça havia num jogo de futebol e ergueu as sobrancelhas imaginando que o ato de boicotar o banheiro se dava em relação ao camisa dezessete. Oras, pensou, que bobagem. Quanta bobagem! Se pudesse iria embora assim que lavasse as mãos na pia, mas encontrou-se arrumando os cabelos e ajeitando as blusas pelo corpo. Passou a mão na testa para afugentar todos os possíveis pensamentos de que alguma coisa estivesse acontecendo na cabeça daquele jogador que a olhava no meio de uma multidão de pessoas sentadas e outras tantas em pé. Olhou-se no espelho já carcomido e esfumaçado pela umidade. Olhou-se com atenção e foi atropelada pela entrada de um grupo de adolescentes que bloqueou provisoriamente os pensamentos que estavam começando a pipocar em sua cabeça de mulher só.

Saiu a passos lentos entre o ir embora e o ficar e foi quando ouviu o apito de algum torcedor incauto que achou que o segundo tempo começara e estaria perdendo o jogo do camisa dezessete e se deu um soco no lado da perna se perguntando como ficara desse jeito com meia dúzia de olhares daquele dezessete. Ele era bonito de fato. Mas só isso. Seu olhar penetrante, duro, viril, olhar de homem que cuida a companheira por amor. Mas o que era aquele pensamento? Sacudiu a cabeça e sentou ao lado da amiga cujo namorado permanecia sentado e rindo com os amigos no meio da quadra do ginásio.

Aquela camisa dezessete estava procurando alguém, ela percebeu, e quando os olhos dele pousaram nos olhos dela ele pôde conversar com o treinador e pareceu-lhe que estava aliviado com a presença dela.

Recomeçou o jogo. E ela já torcia contidamente para o time até que outro gol fora marcado e então sucedeu muitas trocas de jogadores até que o dezessete sentasse no banco, pois a partida ganha garantia aos reservas o direito da titularidade. Soou o apito final. Muitos gritos, exultações e uma estranha presença ao lado dela, o camisa dezessete foi junto com o namorado da amiga festejar o título de primeiro lugar.

Enrubesceu de tal forma que tirou o casaco pesado de lã e levantou-se num ímpeto a estender a mão para aquele homem e apresentar-se rapidamente e ouviu o nome dele como um conto de fadas e sabia que poderia ser uma loucura o que fazia ali, tendo a mão presa pelo camisa dezessete a lhe puxar para fora do ginásio sem dizer nada.

E ele lhe disse tudo e ela não lhe disse nada. Saíram pela rua de mãos dadas como se fossem antigos amantes a se conhecerem entre um gol e outro e sentiu a mão em suas costas que afagavam amorosamente os ombros da própria estupefação da vida.

Casaram-se um mês depois, tiveram três filhos e hoje têm netos a lhe rodearem a vida nos ginásios de esportes.




© 2017 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a).