Por
Helena Frenzel
“Sinto muito, é maior que eu...“, ela perguntou quem
dissera aquilo e ele pediu que seguisse lendo porque era curto: “Cinco minutos
me sento e te prendo numas linhas”, ele disse. “Não pode ser!”, ela exclamou. É que nem tudo se justifica,
há coisas que não têm explicação, simples. Me punha a escrever e algo
acontecia: chamava o telefone ou chamavam à campainha, um dia ela bateu à porta
e a palavra não tem represas, então... “Assim
que foi lento e doloroso o processo, expliquei-lhe, mas ela não creu”. Segui
lendo o conto dele: “Sob a ducha pensava
em tudo aquilo e só voltou a si quando a temperatura baixou bruscamente. Pelo grito, soube que os vizinhos sabiam o que ele fazia naquele momento, por conta de
finas paredes e tubulações antigas, mas também por algo físico, porque no cume
é sempre mais frio e rarefeito é o ar. Sim,
pelo grito...”, ela contou-lhe. “Naquele
dia ela estava no banho, ele não pôde esperar: agarrou-a pelos cabelos e
arrastou até a sala, queria que saísse do jeito que estava, do décimo quinto-andar.” — sim, do último, que também é o meu,
lembrei-me — “Ela sabia que ouviram seus gritos, mas ninguém se
manifestou.” Não me manifestei. “Não espero
que você compreenda”, ela disse a ele quando conversaram. Conversaram? Não
foi bem assim, expliquei-lhe. Ela tomou-o como confidente e o assunto ganhou as ruas. É que as pessoas perguntam muito e ele
já não se lembrava mais com quem falara e o que dissera, só sabia que queria
ajudar. A memória sempre engana e era inútil tentar lembrar porque álcool apaga,
muito eficaz embaralha as cartas e ele e eu tomamos vodca, bebemos para
escrever; eu no meu plano, ele no seu. “Desculpa esfarrapada!”, Bella alterou-se.
“Pura verdade, não posso obrigá-la a crer
nas minhas intenções”, ele dissera. Fiz
uma pausa e Bella fitou-me com frio olhar. O gelo derretia no copo e eu tentava
antecipar os próximos passos daquelas personagens, as moléculas, o fluído, o
alívio, o estar e o deixar-se, pois ser
é complexo ao cubo, tudo depende dos ditos-não-ditos, limites claríticos que
claros perdem sentidos, e núcleos trazem à luz. “Lembro-me que gritos cessavam no apartamento vizinho sempre que ela estava
comigo”, num turbilhão de memórias me pergunto se de fato a conheci, se
dela abusei, ou mesmo disse: “Tu me culpas, e eu a ele, tu és uma ficção de nós”.
“E você espera que eu compreenda?”, Bella soltou num fio de voz. “O marido a abandonara com gêmeos pequenos e ela
lutava para não desistir da vida num quarto de hotel. De dinheiro não
precisava, necessitava um lar. Mas as pessoas se negavam a alugar-lhe
apartamento quando sabiam dos meninos e das dificuldades para pagar. Voltaria a
trabalhar em setembro, até lá ficaria sem comprovante de renda e só teria o
extrato bancário”. E muita esperança, pensei; e seguia defendendo o marido: “Não, ele não sairá de casa, eu e os
meninos temos de sair. Mas peço que não contes nada. Ele precisa curar-se, bebe
para escrever... mas agora que saímos de casa ele vai se tratar”. Mulheres
fantasiam muito, nem Deus sabe o motivo; também fantasio e sei: só quem viveu
sabe o que foi, mas se ela confiava... “E
o que há de arte nisto?”, meu escritor perguntava, Bella queria viver; ele também...
Respondi-lhe: “A vida, filho, a vida...
queres arte maior? Eu te criei ou tu me criaste? O que é realidade? Todos os
dias é preciso ser artista, viver é surreal” e ele: “Ela não cria como eu tivera a petulância de apropriar-me de sua vida, depois
do tanto que havia pedido, implorado até: ‘Não me transforme em mais uma de suas
personagens!’”. “Sinto muito, é maior
que eu...” Terminei a leitura com o rosto em brasa, não podia encará-la nem
gastar uma palavra mais. Isabella deixou o apartamento; e a porta, escancarada.
Tudo ao meu redor girava... Lá fora, ao que parece, tinha início o pôr do sol.
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Nossa! !!! Amei! Beijos Michele
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