terça-feira, 11 de abril de 2017

Isabella queria viver



Por Helena Frenzel

“Sinto muito, é maior que eu...“, ela perguntou quem dissera aquilo e ele pediu que seguisse lendo porque era curto: “Cinco minutos me sento e te prendo numas linhas”, ele disse. “Não pode ser!”, ela exclamou. É que nem tudo se justifica, há coisas que não têm explicação, simples. Me punha a escrever e algo acontecia: chamava o telefone ou chamavam à campainha, um dia ela bateu à porta e a palavra não tem represas, então... “Assim que foi lento e doloroso o processo, expliquei-lhe, mas ela não creu”. Segui lendo o conto dele: “Sob a ducha pensava em tudo aquilo e só voltou a si quando a temperatura baixou bruscamente. Pelo grito, soube que os vizinhos sabiam o que ele fazia naquele momento, por conta de finas paredes e tubulações antigas, mas também por algo físico, porque no cume é sempre mais frio e rarefeito é o ar. Sim, pelo grito...”, ela contou-lhe. “Naquele dia ela estava no banho, ele não pôde esperar: agarrou-a pelos cabelos e arrastou até a sala, queria que saísse do jeito que estava, do décimo quinto-andar.” — sim, do último, que também é o meu, lembrei-me — “Ela sabia que ouviram seus gritos, mas ninguém se manifestou.” Não me manifestei. “Não espero que você compreenda”, ela disse a ele quando conversaram. Conversaram? Não foi bem assim, expliquei-lhe. Ela tomou-o como confidente e o assunto ganhou as ruas. É que as pessoas perguntam muito e ele já não se lembrava mais com quem falara e o que dissera, só sabia que queria ajudar. A memória sempre engana e era inútil tentar lembrar porque álcool apaga, muito eficaz embaralha as cartas e ele e eu tomamos vodca, bebemos para escrever; eu no meu plano, ele no seu. “Desculpa esfarrapada!”, Bella alterou-se. “Pura verdade, não posso obrigá-la a crer nas minhas intenções”, ele dissera. Fiz uma pausa e Bella fitou-me com frio olhar. O gelo derretia no copo e eu tentava antecipar os próximos passos daquelas personagens, as moléculas, o fluído, o alívio, o estar e o deixar-se, pois ser é complexo ao cubo, tudo depende dos ditos-não-ditos, limites claríticos que claros perdem sentidos, e núcleos trazem à luz. “Lembro-me que gritos cessavam no apartamento vizinho sempre que ela estava comigo”, num turbilhão de memórias me pergunto se de fato a conheci, se dela abusei, ou mesmo disse: “Tu me culpas, e eu a ele, tu és uma ficção de nós”. “E você espera que eu compreenda?”, Bella soltou num fio de voz. “O marido a abandonara com gêmeos pequenos e ela lutava para não desistir da vida num quarto de hotel. De dinheiro não precisava, necessitava um lar. Mas as pessoas se negavam a alugar-lhe apartamento quando sabiam dos meninos e das dificuldades para pagar. Voltaria a trabalhar em setembro, até lá ficaria sem comprovante de renda e só teria o extrato bancário”. E muita esperança, pensei; e seguia defendendo o marido: “Não, ele não sairá de casa, eu e os meninos temos de sair. Mas peço que não contes nada. Ele precisa curar-se, bebe para escrever... mas agora que saímos de casa ele vai se tratar”. Mulheres fantasiam muito, nem Deus sabe o motivo; também fantasio e sei: só quem viveu sabe o que foi, mas se ela confiava... “E o que há de arte nisto?”, meu escritor perguntava, Bella queria viver; ele também... Respondi-lhe: “A vida, filho, a vida... queres arte maior? Eu te criei ou tu me criaste? O que é realidade? Todos os dias é preciso ser artista, viver é surreal” e ele: “Ela não cria como eu tivera a petulância de apropriar-me de sua vida, depois do tanto que havia pedido, implorado até: ‘Não me transforme em mais uma de suas personagens!’”. “Sinto muito, é maior que eu...” Terminei a leitura com o rosto em brasa, não podia encará-la nem gastar uma palavra mais. Isabella deixou o apartamento; e a porta, escancarada. Tudo ao meu redor girava... Lá fora, ao que parece, tinha início o pôr do sol.



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