Por Michele Calliari Marchese
Foi no meio de uma festa agitada que ela percebeu finalmente o sentido
das palavras de Virginia Woolf em seu livro Mrs. Dalloway.
Havia lido o livro há muitos anos e lembrava que um livro inteiro fora
escrito para descrever um, apenas um dia na vida de uma mulher – Mrs. Dalloway.
A protagonista estivera às voltas naquele dia para preparar uma festa, um
jantar com convidados, e lembrava que toda a vida dela se resumira àquele dia da
festa. Assim como ela se sentira naquele dia em que finalmente iria a uma
festa.
Tivera muito cuidado na escolha da roupa, da maquiagem, do cabelo e dos
sapatos. O dia inteiro envolveu-se nisso como se fosse o último dia de sua
vida, cheia de energia e entusiasmo. Aprumou-se em ficar com o corpo ereto o
mais possível e pensando em seus pensamentos de mulher que dançaria nos
momentos propícios, cantaria junto se soubesse a música, seria feliz e amaria
ainda mais o marido.
Saiu de casa sentindo-se livre e bonita, com a cabeça vazia de outros
sentimentos que não fossem o de se sentir assim, não a preocupava nada, não
tinha com o que se preocupar e olhou o marido com eterna paixão. Pegou em sua
mão e perguntou-lhe por que fazia quinze anos que não saíam ou por que deixaram
de fazê-lo. Por inúmeros motivos, ele respondeu. E foi só.
A festa estava linda e aconchegante, muitos amigos e conhecidos que
cumprimentavam e perguntavam sobre as coisas de sempre e foi servido algum
petisco como entrada e água em garrafinhas redondas e azuis que faiscavam com o
jogo de luzes que se reproduzia no palco onde os músicos tocariam. Não perdeu
nenhum detalhe e sentiu-se só.
Não fazia sentido sentir-se só e a esse pensamento alguma coisa quebrou
dentro de si abrindo uma estrada longa sem saída e sem chegadas. A música
começou muito alta a princípio depois baixaram um pouco o volume e as luzes que
piscavam e rodeavam as gentes que estavam lá, algumas já bêbadas, pensou: como
isso é possível se a festa recém começou?
Um casal abraçou-se ao seu lado e beijou-se no calor da música do grupo
ABBA e ela olhou aquilo como se fossem de outro planeta, perguntou-se onde
estivera todo esse tempo, sem ver casais se beijando normalmente pela paixão
que sentiam um pelo outro e olhou o marido a dançar do seu lado com o gingado
que ela conhecia tão bem e repetiu-lhe os passos para acompanhá-lo e ele pegou
em sua mão fria causando um calafrio de vida a percorrer-lhe as entranhas.
O marido a beijou e ela o envolveu em seus braços, feliz que ele estava
em também compartilhar aquele momento de beijos com o casal ao lado, feliz que
estava em gingar o corpo sem gingado e dançar a música que entrava em seu peito
como uma arritmia do coração.
Ela foi ao banheiro e uma lufada de vento frio a fez ver muitas das
coisas que jamais teria visto ficando em casa; a noite agradabilíssima, as roupas
modernas e ajustadas em corpos que nunca vira antes, a presença constante da
solidão e pessoas fumando no saguão da entrada; bebendo à vida, rindo e
sorrindo diante de outras pessoas, respirações balouçando ao sabor de um piano
que se sobressaía na música dos Bee Gees. Enquanto lavava as mãos uma garota desconhecida balbuciou palavras
ininteligíveis para ela e outra conhecida que a olhou, porém não a
cumprimentou. Coisas e atitudes que jamais entenderia em vida e ajeitou a barra
da calça que ficara presa no sapato, ajeitou o cabelo numa tentativa vã de
baixar os fios que cresciam em torno da testa e ficou feliz com o resultado de
sua aparência e o vazio daquela estrada cavada à mão, aquela que se abrira num
rasgo logo que a festa começou e estava sendo preenchido com mais e mais vazio
como se fosse possível pegar com a mão e enchê-la até a boca para tapar todas
as frestas e buracos e ranhuras que o tempo deixa com o passar de seus próprios
passos.
Voltou para o marido que estava sentado bebendo e olhava para ela em
sinal de admiração e nem isso fora capaz de aplacar a lâmina afiada e cruel
daquele dia em que se resumira não toda a sua vida, mas uma parte considerável
dela. Há quanto tempo não saía, pensou, não poderia ter esse sentimento de
perda irreparável dentro de si no lugar das palpitações da música do Toto.
Sentou-se ao lado dele e bebeu também para esquecer, como dizem os bêbados.
Saíram a cumprimentar amigos no outro lado do salão e conversaram as
coisas de sempre, as mesmas coisas, como estão, onde estão as crianças, estão
se divertindo, venham sentar conosco e decerto que não se poderia conversar
sobre assuntos interessantes no meio de uma festa ao som alto dos Scorpions,
mas ela almejou trocar ideias mirabolantes sobre o universo e outras coisas
mais e ressentiu-se quando a esposa do outro entendeu tudo errado quando ela
lhe afirmou que era bom vê-la assim alegre e bonita e então passaram-se bons
minutos sem ter aquele sentimento verdadeiro da ineficácia do sentido de estar
numa festa.
Eram quatro horas da madrugada e num assomo de cumplicidade os dois se
convidaram para voltar para casa e assentiram na risada da coincidência e
despediram-se dos amigos e dos conhecidos que foram ficando para trás, na festa
que agora ia ao som de Roxette. O saguão estava na penumbra, o corrimão da
escada seguia frio e os degraus continuavam ásperos como sempre, porém ficaram
para trás assim como as portas a calçada e a rua e então ela lembrou-se por que
fazia quinze anos que não saía mais para uma festa e seus passos continuavam
levando-a para longe, sempre em frente e agora, pensou, seriam mais quinze
anos?
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