quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Panela preta


Por Michele C. Marchese

Foi num instante tardio que sentiu o cheiro de queimado. Alguns segundos antes salvariam a canjica do calor inclemente do fogão a lenha. Nem lembrava quanta lenha havia posto no fogão e quando? Decerto que não muitas, já que a porta era razoavelmente pequena, e cheirava a doce, e ergueu as sobrancelhas como num pasmo atrapalhando-se com as toalhas para pegar a panela da canjica jazida. Jogou-a em cima da pia num arremesso de bailarina que estreia para uma multidão de quinhentas pessoas pondo em risco o dedo mindinho que ficara fora da toalha e queimara como seus milhos. Beijou o dedo e meteu-lhe debaixo da torneira enquanto sibilava amaldiçoando tudo e todos. 
Restou-lhe jogar aos porcos aquele doce intragável quando o marido, um bruto por natureza e em cada ocasião possível, reparou a panela de alumínio que comprara na cidade e cujo fundo negro lhe dissipou o pouco bom humor do dia.
Pediu-lhe o que havia acontecido e pelo fato da pergunta ter sido feita em uma voz melodiosa, ela, de costas para ele, respondeu que fazia canjica para as visitas que não tardariam em chegar. Espantou os cabelos do rosto com um sopro e avistou a carroça se achegando na entrada da casa. Pois que haviam chegado naquele exato instante em que olhara para o marido a dizer que deveriam recebê-los como mandava a boa educação e ele, cumprimentando com um simpático aceno de mãos, pegou a panela das mãos da mulher e mostrando às visitas aquele pedaço incômodo de alumínio sujo de milho e parou um a um para mostrar o fundo enegrecido pela queimadura do mimo que seria oferecido naquela tarde e essa demonstração ingrata não poupou nem as crianças, que ficaram com medo daquele homem com a panela na mão e foram se esconder entre as saias de suas mães.
Então começou com os piores despautérios a respeito das poucas habilidades culinárias dela e o quanto havia pagado pela dita panela como um presente de aniversário e agora ela estava ali, praticamente imprópria para o uso. Uma das visitas, para amenizar o mal-estar que se instalara de imediato, ainda mais com a mulher de cabeça baixa ao lado do marido a torcer as mãos na humilhação, sugeriu que se jogasse fora e se comprasse outra porque eram baratas e o marido olhou aquele esbanjador de uma figa e que decerto havia herdado o dinheiro que tinha para gastar e não conseguido como ele, através de muito suor e trabalho braçal. E ainda por cima dava ideias de jerico às mulheres pasmas que estavam ali.
Instalou-se um silêncio aterrador. Todos se olhavam pensando ser aquela visita um grande erro de decisão e o compadre, para não incomodar ainda mais a crise conjugal subiu de volta na carroça enquanto o marido olhava a perscrutar a esposa a respeito de quem havia convidado aqueles pedantes que agora se achavam em silêncio na frente da casa. A esposa tratou de manda-los entrar, pois que as crianças já estavam às voltas brincando pelo pátio e não se apercebeu que o marido lhe entregava a panela queimada para que fosse lavar imediatamente sem chance de esperar para depois. Mas o que é isso? Pensou ela, e pegou instintivamente a panela das mãos do marido e encostou-a num canto qualquer da cozinha que agora abrigava aquelas famílias de compadres que estavam cansados da viagem e que decerto estavam sedentos e o marido antecipou-lhe os pensamentos e ofereceu uma jarra com a água pestilenta do seu ódio pela mulher. Ela lavaria depois ou jogaria fora conforme havia sugerido aquele compadre, e riu-se imaginando que o marido teria uma síncope caso fizesse isso e um esplendor de beleza perpassou pelo seu rosto jovem de mulher; aquele pensamento de viuvez por causa de uma panela não era de todo um incômodo, há muito a incomodava as ranhetices daquele bruto que escolhera para casar. 
Seus pensamentos foram interrompidos quando o marido ajuntou a panela daquele canto da cozinha e colocou muito delicadamente na pia para não assustar as visitas e fez sinal com os olhos de que era preciso lavar, e logo. Ela obviamente não entendeu, pois tinha sido o marido que convidara aqueles compadres para aquele colóquio e por fim agora a mandava lavar uma panela? Oras, mas é o fim do mundo mesmo, pensou, pois não era capaz de verbalizar o que lhe ia ao íntimo. 
Ele não arredou o pé do lado dela com escovas e sabões e não se sentou à mesa com os convidados e tampouco conversou amenidades sobre o tempo ou chamou a atenção de alguma criança incauta, apenas cutucava-a com os apetrechos na mão e que aquilo teria que ter fim, não poderia deixar a panela daquele jeito.
Maldita canjica. Olhou para as visitas que olhavam para ela em plena estupefação e esperando que tomasse alguma atitude, alguma atitude nobre que colocasse aquele infame em seu devido lugar e ela estendeu a mão para pegar o sabão e ouviu ou pensou ouvir um suspiro de resignação da comadre e ela tinha a cabeça baixa como a querer fugir daquela cena extremamente desagradável e todos, com exceção do marido, esperavam aquela maldita atitude que tornaria tudo mais aceitável e o ar mais respirável. Ela notou que não beberam da água aguardando acontecimentos que ela nunca tivera coragem de fazer em vida, alagando a alma com as palavras nunca proferidas mediante algum rebaixamento que o marido lhe impunha severamente e arduamente por todos os anos de seu estéril casamento.

Maldito presente. E com a mão ensaboada deixou cair a panela no chão assustando todos, inclusive aquele marido que não se amedrontava por nada e quando abaixou-se para pegá-la novamente, um impulso mais forte que si mesma, avalizado pelos olhares ardentes dos compadres sentados à mesa, jogou pela janela a dita cuja suja, enegrecida pelo fogo das entranhas dela e peitou o marido numa atitude única em sua vida e enxugou as mãos no avental sem proferir uma palavra sequer e diante da inacreditável atitude, restou ao marido vê-la arrumar os parcos pertences num lençol e chamar as visitas que estavam prontas na carroça premeditando enfim o triste desfecho daquele casamento e a levaram embora, para nunca mais voltar.


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2 comentários:

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