quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O Trato e as Mensagens


Por Helena Frenzel

Olhe, eu não gosto de escrever não. Aliás eu morro de preguiça de escrever, mas o trato foi o seguinte: se eu contasse o causo ela me deixaria em paz. Eis que Ella me aparecia em sonhos e quanto mais eu me negava a contar sua história menos ela se dispunha a me deixar dormir. Um dia, à beira de um ataque de nervos, cedi, contei tudo como ela me contou, tim-tim por tim-tim.

Tudo começou naquela tarde, quando eles chegaram sem aviso. Ella havia passado o dia inteiro limpando e organizando coisas, e enquanto limpava e organizava tralhas tinha a sensação de que sua vida não passava daquilo, de uma tralha limpa e organizada. 

Estava cansada, do trabalho e daquela vida de rotinas, pois até no trabalho ela organizava, ainda que fossem bytes, e aqui falo do trabalho que fazemos e alguém por ele nos paga, não daqueles trabalhos que sempre fazemos de graça e quase nunca recebemos sequer um "obrigado!" 

Se bem que, ao mesmo tempo em que sentia enfado, Ella se percebia quase feliz por ter uma vida tão previsível. E por isso se dizia grata, mas se era realmente… não sei.

Desde pequena cultivava o gosto de não andar pelas casas alheias. "Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz" foi um dos mantras de sua infância, ela me disse, e era também o que ela repetia para a filha que, ao contrário da mãe, era muito sociável. 

Quase todos os dias a menina recebia convites para brincar nas casas dos amiguinhos e por conta disso seria provável que os pais dos amiguinhos pudessem ter se achado no direito de autoconvidar-se a visitar os pais dos amiguinhos dos filhos sem pré-aviso. 

E foi isso o que um grupo deles fez naquela tarde. Ella atendeu à campainha e eles foram logo entrando (sem cumprimentá-la) e buscando acomodação, parecia que estavam entrando num local em que eram muito bem-vindos, como num restaurante do qual fossem velhos fregueses com lugares cativos. Só faltou pedir "o de sempre" e a comparação ao restaurante estaria perfeita, ela me disse. Em sua sala não havia mesas separadas, como é comum nos restaurantes, mas os autoconvidados foram se acomodando em grupos animados nos diversos cantos do recanto. 

Não paravam de contar coisas, animados, enquanto se livravam de seus pesados e fétidos casacos e parecia até que Ella não estava presente, tanto para os autoconvidados (melhor dizendo: os invasores) quanto para si, pois não podia crer na petulância daquele grupo chato de pais e mães. O que queriam e como assim chegar sem aviso? 

Bom, se Ella parecia não ser vista era de se esperar que não fosse ouvida também. Algumas mulheres do grupo se levantaram e foram até a cozinha abrindo armários e gavetas à procura de pratos, copos, talheres, comes-e-bebes, saqueando a geladeira como se a casa de Ella fosse uma extensão de um clube de pais e mães. E eles tinham uma cozinha própria também no clube? Desde quando?, ela se perguntou moldando no rosto uma expressão incrédula ao ver sua casa virada em pub e, pelo susto, não conseguia articular palavra, se bem que o olhar bastasse para expressar todos os impropérios que a estavam impedindo até de respirar naquela circunstância. 

Quando sentiu que a erupção viria inevitável e devastadora, porque raiva não se represa, Ella, prevendo os estragos irreparáveis daquele tremor, pegou a filha pelo braço e tratou de sair o mais rápido que pôde daquela casa, na qual passara muitos dias perdidos de sua vida limpando e organizando tralhas. Em passos rápidos e impulsivos, depois correndo, foi deixando para trás (e surpreendeu-se com a falta de apego) as coisas que não tinha mais a certeza se podia chamar de suas, e era como se deixá-las com aquele grupo de invasores não lhe doesse nada ou não lhe doesse tanto quanto cria que doeria —chegado o momento crítico da separação. 

A única coisa que Ella desejava era distância daquele povo, daquelas mães que falavam de outras que viviam postando tudo sobre os filhos nas redes sociais, mas que no fundo faziam a mesma coisa, pois ninguém podia sentar-se ao lado de uma delas num parquinho sem correr o risco de ter de ficar ouvindo (por horas a fio) as últimas conquistas de suas filhas ou filhos, ou ambos. Era o inferno na Terra... um parquinho cheio de mães. 

E Ella saiu correndo puxando a filha, e a filha corria porque Ella a puxava, Ella corria sem saber para onde ia e a filha corria olhando para trás como quem dissesse não estar entendendo nada, mas que sabia que era melhor correr. Era uma filha pequena ainda, nos anos menores que seis. 

As duas correram por umas ruas desertas de gentes e cheias de casas e parece que correram léguas sem se cansarem, pois a respiração seguia tranqüila (inacreditável!), contrariando a pulsação. Isso porque, nos respectivos peitos, os corações das duas saltavam mais do que milho virando pipoca, e nesse pipocamento Ella pensou que queria entender a anatomia e a geografia (nos sonhos) e não soube dizer por que estaria pensando naquilo já que aquelas ruas e aquela fuga eram muito reais. 

Bom, era final de tarde e era novembro, quando escurece mais cedo no hemisfério norte da Terra em que fomos paridos. Pode não ter sido nada disso, mas Ella teve a sensação de que a escuridão ia aumentando à medida em que elas corriam e, num momento, ela percebeu que as luzes dos postes estavam acessas e que as pessoas estavam dentro de suas casas, provavelmente jantando. 

Eram umas cinco da tarde, mas parecia já umas dez da noite por conta do breu, e só quando deixaram de correr e voltaram a caminhar em normal ritmo, foi que Ella e a filha começaram a sentir frio e ela percebeu que haviam fugido sem sequer um agasalho. 

Com medo de que se resfriassem Ella criou coragem de tocar na campainha de uma das casas e pedir ajuda e abrigo. Ela poderia ligar para o marido, pedir socorro, dizer que não se assustasse quando chegasse em casa e encontrasse a farra daquele grupo folgado de pais e mães. 

E pensando nele lembrou-se que aquele lá também vivia num mundo paralelo e que era capaz até que não percebesse nem a farra do grupo e nem as mudanças quando voltasse para casa (cheio de trabalho para casa) por volta das cinco. Mas alguma coisa Ella tinha que fazer. 

Abriu-lhe a porta um senhor simpático que sorria e Ella contou apressada que tinha saído correndo de casa, literalmente, que esquecera agasalho, celular e que precisava, se não fosse muito incômodo, de um lugar aquecido para aguardar por algum tempo e de um telefone para pedir ao marido que apanhasse as duas mais tarde, ali onde se encontravam. O senhor seguiu ouvindo, ainda sorrindo simpaticamente, e alargou a abertura da porta para deixar as duas entrarem. 

Lá dentro estava aquecido e o fogo na lareira era convidativo. Uma senhora igualmente simpática lia um jornal e não pareceu querer distrair-se para saber quem eram aquela mãe e aquela filha ou o que estavam fazendo ali com caras de frio. Por incrível que pareça Ella não se incomodou com aquela atitude nada empática da simpática senhora, que lhe pareceu muito natural porque quem está lendo geralmente não gosta de ser interrompido e trazido à força de volta ao mundo real, e os jornais de hoje em dia estão que só feitos de histórias fantásticas, surreais, daquelas que não se consegue mais encontrar em bons livros de fantasia e ficção —a concorrência está desleal. 

O senhor (que já não sorria) apontou o telefone enquanto sentava-se numa poltrona e retomava o seu jornal. Ella ligou para o celular do marido e como ele não atendeu, como quase sempre fazia, deixou uma mensagem na caixa postal e deu o endereço da casa do senhor simpático pedindo que, por cortesia, fosse buscá-las lá. E tendo feito isso, buscou, com a filha, um lugar no sofá, perto do fogo e longe do frio. 

O senhor simpático agora lia o jornal e mostrava uma expressão de riso diante das fantásticas histórias. Ella conseguiu ler na manchete de uma página que o ditador da Bugia estava exigindo a volta da pena de morte. Provavelmente para poder sumir legalmente com quem fosse crítico ao seu governo. E ainda têm a coragem de dizer que a Bugia é um país democrático… tsc, tsc, tsc —ela pensou mas não quis comentar e achou melhor deixar o casal simpático com seus jornais (e seria mesmo um casal casado, se é que isso importava) e ocupou os olhos observando o local. A filha —se pelo susto, pelo frio ou pela pouca idade— não demonstrava ter vontade de agir ou falar, limitando-se ao silêncio e a fazer tudo o que lhe pedia ou indicava a mãe.

Ella não teve tempo para pensar sobre o que estava observando no recinto porque, no segundo seguinte, soou a campainha e o senhor simpático pôs uma cara nítida de enfado (por ter sido outra vez tirado da leitura do seu jornal), levantou-se e foi resmungando até a porta. E eu sou imensamente grato por ela não ter tido tempo para ficar observando detalhes que me obrigassem a uma descrição bordada do local, coisa que odeio! Ainda mais porque não escrevo por gosto, escrevo porque quero a minha paz, e se for para me fazer críticas neste sentido sugiro que deixe de preguiça você também e imagine os personagens e os lugares. Estou lhe dando total liberdade interpretativa, quer coisa melhor?

Pois bem, mas voltando à campainha, Ella sabia que não podia ser o marido, porque não havia ainda nem cinco minutos da chamada e os serviços de telefonia eram rápidos mas não tão rápidos assim. O senhor (de novo mais simpático) voltou com um amigo da família que, logo descobriram (mas que coincidência!), era também um velho amigo de Ella e, de alguma maneira, ela não se surpreendeu ao encontrá-lo ali, porém não teve tempo nem vontade de pensar a respeito daqueles sentimentos e acasos porque o amigo recém-chegado, como se a visse todos os dias, foi logo perguntando o que ela ali fazia (na casa daqueles velhinhos) e neste momento Ella desejou que tivesse consigo um gravador-Zinho com o qual sempre andava e que tivesse já nele, gravada, a explicação que deu antes ao simpático senhor. E o gravador-Zinho não estava à mão, mas foi como se tivesse sido usado, pois Ella repetiu ponto por ponto, vírgula por vírgula rapidamente a história que contou ao velhinho, que também não vou lhe contar porque me dá uma preguiça e como eu já disse só estou contando esta história para poder dormir mais uma vez. Então que fique bem claro: não me preocupo com você. Aliás, por que cargas d’água eu deveria preocupar-me? 

Sim, mas voltando ao causo, o fato é que o amigo ofereceu-se para levar as duas para casa e naquele momento Ella se encolheu porque pensou que voltaria para aquela farra de mães e pais e teve a sensação doída de que um ácido lhe queimava o estômago. Então pediu ao amigo que por favor tirasse as duas dali mas que não as levasse para casa porque não queria aparecer no jornal do dia seguinte como a mãe tresloucada que assassinou aquele grupo de pais chatos, e também o marido, que vivia em outro mundo, e também o amigo, que levou as duas de volta para aquela casa em que ela só conhecia limpeza e organização. E disse tudo isso num átimo e olhou para a filha, que não merecia ficar sem os pais e nem com os amiguinhos órfãos, e olhou para o amigo ainda em tempo de notar-lhe o assombro e a falta de cor e chão. 

Ella, mais que depressa, não querendo que ele se sentisse na obrigação de cuidar delas, repetiu que só queria que ele fizesse o favor de levá-las dali para um outro local seguro e apertou a mão da filha para ter certeza de que a pimpolha ainda vivia. Não se preocupe, vou levar vocês para um lugar seguro, disse o prático velho amigo. E as duas se foram com ele, cada uma enrolada num cobertor emprestado dos velhinhos, mas antes de irem Ella ainda pediu ao senhor para usar o telefone mais uma vez, e este foi um grande erro porque então o senhor ficou zangado e explodiu, não pelo telefone, mas porque não queria mais que lhe interrompessem a diaba da leitura e mandou que Ella usasse a porra do telefone sempre que quisesse e que não perguntasse mais nada e Ella tratou de tapar rapidamente os ouvidos da filha com as duas mãos em concha, para que não se sujassem tanto com a porra daquele senhor. Mas as palavras não são sujas, elas apenas levam adiante as intenções de quem as usa. 

E Ella também não se assustou com a reação do senhor, agora descontrolado, pois entendia-o muito bem. Não gostava quando a interrompiam ou quando tiravam a sua paz, como havia feito aquele grupo asqueroso de pais e mães que só pensavam em se reunir para falar de filhos e filhas e Ella correu ao telefone e ligou para o marido dizendo que ela e a filha se iam com um velho amigo e que depois lhe telefonaria dizendo onde poderiam ser encontradas. 

Mais uma vez a mensagem ficou na caixa postal, porque o marido não gostava de ser interrompido quando estava no trabalho, embora já passasse das cinco, hora que ele, por hábito, deveria estar em casa ou por chegar. E o amigo? Esse passou o tempo da porra só observando, nada expressou. 

E para não correr o risco de levar outro esporro, Ella escreveu num papelzinho: "Muito obrigada pelo abrigo e pelas ligações. Depois lavo e devolvo os agasalhos. Deus lhe pague esta generosidade! Desculpe ter interrompido a leitura do seu jornal". Agradeceu só a ele, porque a senhora simpática seguia lendo o seu jornal, alheia a todo o resto. 

Então, agasalhadas, saíram as duas em companhia do amigo, o mais silenciosamente possível, deixando o papel dobrado sobre o sofá macio que até então haviam ocupado naquela sala não descrita. Entraram no carro do amigo, que era um carro preto antigo, e partiram. Desde então seguem viajando, as duas e o amigo, o que não deixa de fazer sentido, pois Um Lugar Seguro é um destino impossível de ser encontrado, não é verdade? E a Física dos sonhos não é a mesma da realidade, bem lembrado.

Bom, Ella me apareceu várias vezes em sonhos com um olhar vago perdido perguntando se o marido sequer ouviu as mensagens na caixa postal ou mesmo se o senhor simpático teria lido o bilhete. Ella imagina que as mensagens tenham se perdido em algum satélite e que um vento traiçoeiro (vindo da porta que se fechou vagarosamente quando os três saíram —e age a Física dos sonhos outra vez!— soprou na lareira o bilhete que ela deixara dobradinho sobre o negro sofá. O fato é que nunca saberemos, por isso ela praticamente me obrigou a escrever esta história, na esperança de uma resposta, seja do senhor simpático ou do marido ocupado.

Já eu, a única coisa que me pergunto é o que teria sido se Ella, ao invés de ter fugido, tivesse simplesmente dito àqueles pais e mães metidos que estava cansada, e que por isso não queria visitas naquela tarde, que queria só a paz da sua casa limpa e arrumada e que estava esperando o marido para que pudessem, seriamente, conversar. A verdade, nada mais do que a verdade, por vezes funciona. Teria funcionado? E se…? Não sei! Só sei que essa pergunta move as mãos dos escritores (e eu não sou um deles, você já sabe) e a Literatura, sem a qual não sei viver, pois leio com prazer e amo paradoxos. Por isso eu digo que fins, esta história pode até ter vários, porém o certo é que não tem final nenhum, pois se Ella me deixou em paz… aí já é outro causo!


Para Mayra, pelo insight. 
Para Michele, que me ensinou a amar causos.








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Um comentário:

  1. Isto, porque não gosta de escrever! Imagine se gostasse. Maravilha!

    - Alice -

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