quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O Trato e as Mensagens


Por Helena Frenzel

Olhe, eu não gosto de escrever não. Aliás eu morro de preguiça de escrever, mas o trato foi o seguinte: se eu contasse o causo ela me deixaria em paz. Eis que Ella me aparecia em sonhos e quanto mais eu me negava a contar sua história menos ela se dispunha a me deixar dormir. Um dia, à beira de um ataque de nervos, cedi, contei tudo como ela me contou, tim-tim por tim-tim.

Tudo começou naquela tarde, quando eles chegaram sem aviso. Ella havia passado o dia inteiro limpando e organizando coisas, e enquanto limpava e organizava tralhas tinha a sensação de que sua vida não passava daquilo, de uma tralha limpa e organizada. 

Estava cansada, do trabalho e daquela vida de rotinas, pois até no trabalho ela organizava, ainda que fossem bytes, e aqui falo do trabalho que fazemos e alguém por ele nos paga, não daqueles trabalhos que sempre fazemos de graça e quase nunca recebemos sequer um "obrigado!" 

Se bem que, ao mesmo tempo em que sentia enfado, Ella se percebia quase feliz por ter uma vida tão previsível. E por isso se dizia grata, mas se era realmente… não sei.

Desde pequena cultivava o gosto de não andar pelas casas alheias. "Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz" foi um dos mantras de sua infância, ela me disse, e era também o que ela repetia para a filha que, ao contrário da mãe, era muito sociável. 

Quase todos os dias a menina recebia convites para brincar nas casas dos amiguinhos e por conta disso seria provável que os pais dos amiguinhos pudessem ter se achado no direito de autoconvidar-se a visitar os pais dos amiguinhos dos filhos sem pré-aviso. 

E foi isso o que um grupo deles fez naquela tarde. Ella atendeu à campainha e eles foram logo entrando (sem cumprimentá-la) e buscando acomodação, parecia que estavam entrando num local em que eram muito bem-vindos, como num restaurante do qual fossem velhos fregueses com lugares cativos. Só faltou pedir "o de sempre" e a comparação ao restaurante estaria perfeita, ela me disse. Em sua sala não havia mesas separadas, como é comum nos restaurantes, mas os autoconvidados foram se acomodando em grupos animados nos diversos cantos do recanto. 

Não paravam de contar coisas, animados, enquanto se livravam de seus pesados e fétidos casacos e parecia até que Ella não estava presente, tanto para os autoconvidados (melhor dizendo: os invasores) quanto para si, pois não podia crer na petulância daquele grupo chato de pais e mães. O que queriam e como assim chegar sem aviso? 

Bom, se Ella parecia não ser vista era de se esperar que não fosse ouvida também. Algumas mulheres do grupo se levantaram e foram até a cozinha abrindo armários e gavetas à procura de pratos, copos, talheres, comes-e-bebes, saqueando a geladeira como se a casa de Ella fosse uma extensão de um clube de pais e mães. E eles tinham uma cozinha própria também no clube? Desde quando?, ela se perguntou moldando no rosto uma expressão incrédula ao ver sua casa virada em pub e, pelo susto, não conseguia articular palavra, se bem que o olhar bastasse para expressar todos os impropérios que a estavam impedindo até de respirar naquela circunstância. 

Quando sentiu que a erupção viria inevitável e devastadora, porque raiva não se represa, Ella, prevendo os estragos irreparáveis daquele tremor, pegou a filha pelo braço e tratou de sair o mais rápido que pôde daquela casa, na qual passara muitos dias perdidos de sua vida limpando e organizando tralhas. Em passos rápidos e impulsivos, depois correndo, foi deixando para trás (e surpreendeu-se com a falta de apego) as coisas que não tinha mais a certeza se podia chamar de suas, e era como se deixá-las com aquele grupo de invasores não lhe doesse nada ou não lhe doesse tanto quanto cria que doeria —chegado o momento crítico da separação. 

A única coisa que Ella desejava era distância daquele povo, daquelas mães que falavam de outras que viviam postando tudo sobre os filhos nas redes sociais, mas que no fundo faziam a mesma coisa, pois ninguém podia sentar-se ao lado de uma delas num parquinho sem correr o risco de ter de ficar ouvindo (por horas a fio) as últimas conquistas de suas filhas ou filhos, ou ambos. Era o inferno na Terra... um parquinho cheio de mães. 

E Ella saiu correndo puxando a filha, e a filha corria porque Ella a puxava, Ella corria sem saber para onde ia e a filha corria olhando para trás como quem dissesse não estar entendendo nada, mas que sabia que era melhor correr. Era uma filha pequena ainda, nos anos menores que seis. 

As duas correram por umas ruas desertas de gentes e cheias de casas e parece que correram léguas sem se cansarem, pois a respiração seguia tranqüila (inacreditável!), contrariando a pulsação. Isso porque, nos respectivos peitos, os corações das duas saltavam mais do que milho virando pipoca, e nesse pipocamento Ella pensou que queria entender a anatomia e a geografia (nos sonhos) e não soube dizer por que estaria pensando naquilo já que aquelas ruas e aquela fuga eram muito reais. 

Bom, era final de tarde e era novembro, quando escurece mais cedo no hemisfério norte da Terra em que fomos paridos. Pode não ter sido nada disso, mas Ella teve a sensação de que a escuridão ia aumentando à medida em que elas corriam e, num momento, ela percebeu que as luzes dos postes estavam acessas e que as pessoas estavam dentro de suas casas, provavelmente jantando. 

Eram umas cinco da tarde, mas parecia já umas dez da noite por conta do breu, e só quando deixaram de correr e voltaram a caminhar em normal ritmo, foi que Ella e a filha começaram a sentir frio e ela percebeu que haviam fugido sem sequer um agasalho. 

Com medo de que se resfriassem Ella criou coragem de tocar na campainha de uma das casas e pedir ajuda e abrigo. Ela poderia ligar para o marido, pedir socorro, dizer que não se assustasse quando chegasse em casa e encontrasse a farra daquele grupo folgado de pais e mães. 

E pensando nele lembrou-se que aquele lá também vivia num mundo paralelo e que era capaz até que não percebesse nem a farra do grupo e nem as mudanças quando voltasse para casa (cheio de trabalho para casa) por volta das cinco. Mas alguma coisa Ella tinha que fazer. 

Abriu-lhe a porta um senhor simpático que sorria e Ella contou apressada que tinha saído correndo de casa, literalmente, que esquecera agasalho, celular e que precisava, se não fosse muito incômodo, de um lugar aquecido para aguardar por algum tempo e de um telefone para pedir ao marido que apanhasse as duas mais tarde, ali onde se encontravam. O senhor seguiu ouvindo, ainda sorrindo simpaticamente, e alargou a abertura da porta para deixar as duas entrarem. 

Lá dentro estava aquecido e o fogo na lareira era convidativo. Uma senhora igualmente simpática lia um jornal e não pareceu querer distrair-se para saber quem eram aquela mãe e aquela filha ou o que estavam fazendo ali com caras de frio. Por incrível que pareça Ella não se incomodou com aquela atitude nada empática da simpática senhora, que lhe pareceu muito natural porque quem está lendo geralmente não gosta de ser interrompido e trazido à força de volta ao mundo real, e os jornais de hoje em dia estão que só feitos de histórias fantásticas, surreais, daquelas que não se consegue mais encontrar em bons livros de fantasia e ficção —a concorrência está desleal. 

O senhor (que já não sorria) apontou o telefone enquanto sentava-se numa poltrona e retomava o seu jornal. Ella ligou para o celular do marido e como ele não atendeu, como quase sempre fazia, deixou uma mensagem na caixa postal e deu o endereço da casa do senhor simpático pedindo que, por cortesia, fosse buscá-las lá. E tendo feito isso, buscou, com a filha, um lugar no sofá, perto do fogo e longe do frio. 

O senhor simpático agora lia o jornal e mostrava uma expressão de riso diante das fantásticas histórias. Ella conseguiu ler na manchete de uma página que o ditador da Bugia estava exigindo a volta da pena de morte. Provavelmente para poder sumir legalmente com quem fosse crítico ao seu governo. E ainda têm a coragem de dizer que a Bugia é um país democrático… tsc, tsc, tsc —ela pensou mas não quis comentar e achou melhor deixar o casal simpático com seus jornais (e seria mesmo um casal casado, se é que isso importava) e ocupou os olhos observando o local. A filha —se pelo susto, pelo frio ou pela pouca idade— não demonstrava ter vontade de agir ou falar, limitando-se ao silêncio e a fazer tudo o que lhe pedia ou indicava a mãe.

Ella não teve tempo para pensar sobre o que estava observando no recinto porque, no segundo seguinte, soou a campainha e o senhor simpático pôs uma cara nítida de enfado (por ter sido outra vez tirado da leitura do seu jornal), levantou-se e foi resmungando até a porta. E eu sou imensamente grato por ela não ter tido tempo para ficar observando detalhes que me obrigassem a uma descrição bordada do local, coisa que odeio! Ainda mais porque não escrevo por gosto, escrevo porque quero a minha paz, e se for para me fazer críticas neste sentido sugiro que deixe de preguiça você também e imagine os personagens e os lugares. Estou lhe dando total liberdade interpretativa, quer coisa melhor?

Pois bem, mas voltando à campainha, Ella sabia que não podia ser o marido, porque não havia ainda nem cinco minutos da chamada e os serviços de telefonia eram rápidos mas não tão rápidos assim. O senhor (de novo mais simpático) voltou com um amigo da família que, logo descobriram (mas que coincidência!), era também um velho amigo de Ella e, de alguma maneira, ela não se surpreendeu ao encontrá-lo ali, porém não teve tempo nem vontade de pensar a respeito daqueles sentimentos e acasos porque o amigo recém-chegado, como se a visse todos os dias, foi logo perguntando o que ela ali fazia (na casa daqueles velhinhos) e neste momento Ella desejou que tivesse consigo um gravador-Zinho com o qual sempre andava e que tivesse já nele, gravada, a explicação que deu antes ao simpático senhor. E o gravador-Zinho não estava à mão, mas foi como se tivesse sido usado, pois Ella repetiu ponto por ponto, vírgula por vírgula rapidamente a história que contou ao velhinho, que também não vou lhe contar porque me dá uma preguiça e como eu já disse só estou contando esta história para poder dormir mais uma vez. Então que fique bem claro: não me preocupo com você. Aliás, por que cargas d’água eu deveria preocupar-me? 

Sim, mas voltando ao causo, o fato é que o amigo ofereceu-se para levar as duas para casa e naquele momento Ella se encolheu porque pensou que voltaria para aquela farra de mães e pais e teve a sensação doída de que um ácido lhe queimava o estômago. Então pediu ao amigo que por favor tirasse as duas dali mas que não as levasse para casa porque não queria aparecer no jornal do dia seguinte como a mãe tresloucada que assassinou aquele grupo de pais chatos, e também o marido, que vivia em outro mundo, e também o amigo, que levou as duas de volta para aquela casa em que ela só conhecia limpeza e organização. E disse tudo isso num átimo e olhou para a filha, que não merecia ficar sem os pais e nem com os amiguinhos órfãos, e olhou para o amigo ainda em tempo de notar-lhe o assombro e a falta de cor e chão. 

Ella, mais que depressa, não querendo que ele se sentisse na obrigação de cuidar delas, repetiu que só queria que ele fizesse o favor de levá-las dali para um outro local seguro e apertou a mão da filha para ter certeza de que a pimpolha ainda vivia. Não se preocupe, vou levar vocês para um lugar seguro, disse o prático velho amigo. E as duas se foram com ele, cada uma enrolada num cobertor emprestado dos velhinhos, mas antes de irem Ella ainda pediu ao senhor para usar o telefone mais uma vez, e este foi um grande erro porque então o senhor ficou zangado e explodiu, não pelo telefone, mas porque não queria mais que lhe interrompessem a diaba da leitura e mandou que Ella usasse a porra do telefone sempre que quisesse e que não perguntasse mais nada e Ella tratou de tapar rapidamente os ouvidos da filha com as duas mãos em concha, para que não se sujassem tanto com a porra daquele senhor. Mas as palavras não são sujas, elas apenas levam adiante as intenções de quem as usa. 

E Ella também não se assustou com a reação do senhor, agora descontrolado, pois entendia-o muito bem. Não gostava quando a interrompiam ou quando tiravam a sua paz, como havia feito aquele grupo asqueroso de pais e mães que só pensavam em se reunir para falar de filhos e filhas e Ella correu ao telefone e ligou para o marido dizendo que ela e a filha se iam com um velho amigo e que depois lhe telefonaria dizendo onde poderiam ser encontradas. 

Mais uma vez a mensagem ficou na caixa postal, porque o marido não gostava de ser interrompido quando estava no trabalho, embora já passasse das cinco, hora que ele, por hábito, deveria estar em casa ou por chegar. E o amigo? Esse passou o tempo da porra só observando, nada expressou. 

E para não correr o risco de levar outro esporro, Ella escreveu num papelzinho: "Muito obrigada pelo abrigo e pelas ligações. Depois lavo e devolvo os agasalhos. Deus lhe pague esta generosidade! Desculpe ter interrompido a leitura do seu jornal". Agradeceu só a ele, porque a senhora simpática seguia lendo o seu jornal, alheia a todo o resto. 

Então, agasalhadas, saíram as duas em companhia do amigo, o mais silenciosamente possível, deixando o papel dobrado sobre o sofá macio que até então haviam ocupado naquela sala não descrita. Entraram no carro do amigo, que era um carro preto antigo, e partiram. Desde então seguem viajando, as duas e o amigo, o que não deixa de fazer sentido, pois Um Lugar Seguro é um destino impossível de ser encontrado, não é verdade? E a Física dos sonhos não é a mesma da realidade, bem lembrado.

Bom, Ella me apareceu várias vezes em sonhos com um olhar vago perdido perguntando se o marido sequer ouviu as mensagens na caixa postal ou mesmo se o senhor simpático teria lido o bilhete. Ella imagina que as mensagens tenham se perdido em algum satélite e que um vento traiçoeiro (vindo da porta que se fechou vagarosamente quando os três saíram —e age a Física dos sonhos outra vez!— soprou na lareira o bilhete que ela deixara dobradinho sobre o negro sofá. O fato é que nunca saberemos, por isso ela praticamente me obrigou a escrever esta história, na esperança de uma resposta, seja do senhor simpático ou do marido ocupado.

Já eu, a única coisa que me pergunto é o que teria sido se Ella, ao invés de ter fugido, tivesse simplesmente dito àqueles pais e mães metidos que estava cansada, e que por isso não queria visitas naquela tarde, que queria só a paz da sua casa limpa e arrumada e que estava esperando o marido para que pudessem, seriamente, conversar. A verdade, nada mais do que a verdade, por vezes funciona. Teria funcionado? E se…? Não sei! Só sei que essa pergunta move as mãos dos escritores (e eu não sou um deles, você já sabe) e a Literatura, sem a qual não sei viver, pois leio com prazer e amo paradoxos. Por isso eu digo que fins, esta história pode até ter vários, porém o certo é que não tem final nenhum, pois se Ella me deixou em paz… aí já é outro causo!


Para Mayra, pelo insight. 
Para Michele, que me ensinou a amar causos.








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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Panela preta


Por Michele C. Marchese

Foi num instante tardio que sentiu o cheiro de queimado. Alguns segundos antes salvariam a canjica do calor inclemente do fogão a lenha. Nem lembrava quanta lenha havia posto no fogão e quando? Decerto que não muitas, já que a porta era razoavelmente pequena, e cheirava a doce, e ergueu as sobrancelhas como num pasmo atrapalhando-se com as toalhas para pegar a panela da canjica jazida. Jogou-a em cima da pia num arremesso de bailarina que estreia para uma multidão de quinhentas pessoas pondo em risco o dedo mindinho que ficara fora da toalha e queimara como seus milhos. Beijou o dedo e meteu-lhe debaixo da torneira enquanto sibilava amaldiçoando tudo e todos. 
Restou-lhe jogar aos porcos aquele doce intragável quando o marido, um bruto por natureza e em cada ocasião possível, reparou a panela de alumínio que comprara na cidade e cujo fundo negro lhe dissipou o pouco bom humor do dia.
Pediu-lhe o que havia acontecido e pelo fato da pergunta ter sido feita em uma voz melodiosa, ela, de costas para ele, respondeu que fazia canjica para as visitas que não tardariam em chegar. Espantou os cabelos do rosto com um sopro e avistou a carroça se achegando na entrada da casa. Pois que haviam chegado naquele exato instante em que olhara para o marido a dizer que deveriam recebê-los como mandava a boa educação e ele, cumprimentando com um simpático aceno de mãos, pegou a panela das mãos da mulher e mostrando às visitas aquele pedaço incômodo de alumínio sujo de milho e parou um a um para mostrar o fundo enegrecido pela queimadura do mimo que seria oferecido naquela tarde e essa demonstração ingrata não poupou nem as crianças, que ficaram com medo daquele homem com a panela na mão e foram se esconder entre as saias de suas mães.
Então começou com os piores despautérios a respeito das poucas habilidades culinárias dela e o quanto havia pagado pela dita panela como um presente de aniversário e agora ela estava ali, praticamente imprópria para o uso. Uma das visitas, para amenizar o mal-estar que se instalara de imediato, ainda mais com a mulher de cabeça baixa ao lado do marido a torcer as mãos na humilhação, sugeriu que se jogasse fora e se comprasse outra porque eram baratas e o marido olhou aquele esbanjador de uma figa e que decerto havia herdado o dinheiro que tinha para gastar e não conseguido como ele, através de muito suor e trabalho braçal. E ainda por cima dava ideias de jerico às mulheres pasmas que estavam ali.
Instalou-se um silêncio aterrador. Todos se olhavam pensando ser aquela visita um grande erro de decisão e o compadre, para não incomodar ainda mais a crise conjugal subiu de volta na carroça enquanto o marido olhava a perscrutar a esposa a respeito de quem havia convidado aqueles pedantes que agora se achavam em silêncio na frente da casa. A esposa tratou de manda-los entrar, pois que as crianças já estavam às voltas brincando pelo pátio e não se apercebeu que o marido lhe entregava a panela queimada para que fosse lavar imediatamente sem chance de esperar para depois. Mas o que é isso? Pensou ela, e pegou instintivamente a panela das mãos do marido e encostou-a num canto qualquer da cozinha que agora abrigava aquelas famílias de compadres que estavam cansados da viagem e que decerto estavam sedentos e o marido antecipou-lhe os pensamentos e ofereceu uma jarra com a água pestilenta do seu ódio pela mulher. Ela lavaria depois ou jogaria fora conforme havia sugerido aquele compadre, e riu-se imaginando que o marido teria uma síncope caso fizesse isso e um esplendor de beleza perpassou pelo seu rosto jovem de mulher; aquele pensamento de viuvez por causa de uma panela não era de todo um incômodo, há muito a incomodava as ranhetices daquele bruto que escolhera para casar. 
Seus pensamentos foram interrompidos quando o marido ajuntou a panela daquele canto da cozinha e colocou muito delicadamente na pia para não assustar as visitas e fez sinal com os olhos de que era preciso lavar, e logo. Ela obviamente não entendeu, pois tinha sido o marido que convidara aqueles compadres para aquele colóquio e por fim agora a mandava lavar uma panela? Oras, mas é o fim do mundo mesmo, pensou, pois não era capaz de verbalizar o que lhe ia ao íntimo. 
Ele não arredou o pé do lado dela com escovas e sabões e não se sentou à mesa com os convidados e tampouco conversou amenidades sobre o tempo ou chamou a atenção de alguma criança incauta, apenas cutucava-a com os apetrechos na mão e que aquilo teria que ter fim, não poderia deixar a panela daquele jeito.
Maldita canjica. Olhou para as visitas que olhavam para ela em plena estupefação e esperando que tomasse alguma atitude, alguma atitude nobre que colocasse aquele infame em seu devido lugar e ela estendeu a mão para pegar o sabão e ouviu ou pensou ouvir um suspiro de resignação da comadre e ela tinha a cabeça baixa como a querer fugir daquela cena extremamente desagradável e todos, com exceção do marido, esperavam aquela maldita atitude que tornaria tudo mais aceitável e o ar mais respirável. Ela notou que não beberam da água aguardando acontecimentos que ela nunca tivera coragem de fazer em vida, alagando a alma com as palavras nunca proferidas mediante algum rebaixamento que o marido lhe impunha severamente e arduamente por todos os anos de seu estéril casamento.

Maldito presente. E com a mão ensaboada deixou cair a panela no chão assustando todos, inclusive aquele marido que não se amedrontava por nada e quando abaixou-se para pegá-la novamente, um impulso mais forte que si mesma, avalizado pelos olhares ardentes dos compadres sentados à mesa, jogou pela janela a dita cuja suja, enegrecida pelo fogo das entranhas dela e peitou o marido numa atitude única em sua vida e enxugou as mãos no avental sem proferir uma palavra sequer e diante da inacreditável atitude, restou ao marido vê-la arrumar os parcos pertences num lençol e chamar as visitas que estavam prontas na carroça premeditando enfim o triste desfecho daquele casamento e a levaram embora, para nunca mais voltar.


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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Cozinhando galo...

Por Helena Frenzel

O que significa cozinhar galo? Juro que não sei! 

Quem jura mente, bem sabemos, mas cozinhar galo, no entanto, é uma expressão que me leva de volta à minha boa infância lá no Maranhão, e esta é a única coisa que sei com certeza a respeito desta frase: onde eu costumava ouvir e usá-la. 

Sempre que eu enrolava para fazer um determinado serviço, lá surgia minha tia com esta expressão: "Está cozinhando galo, menina?" Eu não entendia direito o que ela queria dizer com aquilo, mas estranhamente eu começava a me apressar e o serviço terminava saindo.

Que galináceos inspirem a preguiça nas pessoas... bem, isso é algo difícil de se crer, ainda mais porque esses bichos dormem e acordam com o Sol, enquanto tem gente que gasta o dia na cama ou balançando na rede (real) se entupindo de tudo o que encontra nas redes sociais. Mas atrasar uma tarefa e demorar a efetuar o que lhe foi pedido... bem, o que isto teria a ver com os galináceos? Estou por descobrir. E por isso este textículo*, e não se esqueça de aqui pronunciar o "x" como em "táxi", para evitar ambigüidades (risos).

Ao usar esta expressão me peguei pensando se cozinhar galo é mesmo uma tarefa árdua. Não me parece ser, porque cozinhar (de fato) é a tarefa do fogo, o problema da pessoa é preparar o galo para cozer. Nem disto posso falar com propriedade porque nunca cozinhei um, não no sentido literal, e hoje em dia, com essa onda de veganismo, é pouco provável que eu tenha que cozinhar um galo ou uma galinha algum dia, mas se eu tiver que fazê-lo ainda lembro bem de como se faz, graças a quem me ensinou a sobreviver sem latas e congelados.

Mas será mesmo verdade que a carne do galo requer mais tempo para cozer do que a da galinha? Por quê? Teria o galo um outro tipo de carne? Bem, "um outro tipo de carne" talvez não, mas quem sabe músculos mais "treinados"... E se a questão for só o "treinamento", será que se as galinhas começassem a levantar peso as diferenças desapareceriam? Ou será que no caso do galo e da galinha não se pensa em gênero e construção, fica-se apenas na biologia? Ou será que nós é que não sabemos nada sobre a sociedade desses bichos e seus problemas porque não nos interessamos em estudar a fundo seus comportamentos? Bem, são muitas questões... Algumas bobas; outras, nem tanto. Releve!

Imagino que alguém já deve ter feito algum estudo quando recordo aquele filme Chicken Run, sobre galos, galinhas e seres humanos. Recomendo-o aliás, muito bom! Eu poderia ainda tentar entrevistar criadores de galináceos, mas essas pessoas estão cada vez mais raras em nosso mundo ultra super digital rápido, um mundo em que nos supermercados só se encontra congelados ou pó-Zinhos para o micro-ondas e as crianças se assustam (de verdade) ao verem soltos seja um galo, uma galinha ou um porco, que já viraram animais de zoológicos e por lá vivem trancafiados catando o milho dos visitantes.

Há dúvidas ainda quanto ao sentido mas estou segura de que não estou cozinhando galo ao pensar e escrever sobre isto. Aliás, eu NUNCA cozinho galo quando sento para escrever, pois cozinhar galo me parece algo improdutivo, um ócio desperdiçado… E escrever, para mim, é tudo menos isso: desperdício. Cozinhar galo seria então, resumindo, sinônimo de matar o tempo, enrolar e protelar (agora falaste bonito!). 

Parece que também é uma expressão que surgiu no futebol, no jogo do bicho ou nas rinhas de galo, mas aí já não sei, pois não manjo de nenhuma delas. É provável que exista também em Portugal e em outros países lusófonos este cozinhar galo na rede, salgado de mar e secado ao sol equatorial dos trópicos. Taí, ao invés do galo cozido poderíamos ter também, a exemplo da carne-de-sol, o galo-de-sol, ambos com hífens. Mas por aqui paro!






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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A inconsciência


Por Michele Calliari Marchese

Deitara na cama para dormir. Não estava com sono, apenas com aquela falta do que fazer, pois já tinha feito tudo, tudo, desde regar a horta até espanar o pó dos móveis com uma morosidade quase cansativa e pensava, pensava, pensava, pensava em tantas coisas como aquele domingo poderia ser tão maçante, tão sem nada, as horas arrastando-se lentamente, se pelo menos fosse já o entardecer decerto teria um vislumbre da noite para findar aquele dia tão improdutivo; todos os domingos eram assim, pensou. Trocou de canal na televisão sem assistir a nada, e lembrou que teria que comprar pilhas para o controle senão ficaria sem em poucos dias, pois havia comprado a televisão há muitos anos e nunca havia trocado as pilhas, como duravam, nem sabia o tamanho que teriam e resolveu abrir a tampa para verificar o tamanho delas e uma pulou para fora caindo para debaixo da cama. Deixou a pilha lá, inerte no meio daquele chão imenso, aquele esconderijo de pilhas e notou que ele também se escondia em seu enorme esconderijo caseiro, inerte, tolo talvez para não ver o rico dia que fazia lá fora, ou escutar o pio dos passarinhos e lembrou que seu pai lhe dizia que quando as andorinhas revoavam pelo céu, era porque começara o verão.
Levantou-se da cama. Recolheria a pilha e procuraria alguma andorinha, talvez tomasse um sorvete ali na esquina e pensou quando viu as pombas depositando gravetos no peitoril da janela que falta faz meu pai nessas horas, pois discutiríamos o avanço irrefreável da população daquelas aves citadinas, porém nunca mexeríamos nos ovos postos ali, com a maior confiança que de ninguém ousasse mexer neles, tenros, a vida se fazendo aos poucos dentro de uma casca branca, pequena, pensariam? Acho que não. 
Lembrou-se de sua discussão com um amigo sobre a questão da felicidade e da morte, especulações para uma vida inteira, dizia esse amigo. Onde estaria? Nunca mais ouvira falar nele, se tinha ido embora, se não, procuraria o telefone e ligaria mais tarde para ele, para pedir como vai a família, o trabalho e as questões da felicidade e da morte tão intensamente faladas naquele dia onde o vinho era bom e a companhia melhor ainda. Lembrou-se de uma palavra que ele disse: “panvitalismo”, que tudo tinha vida, desde a pedra até a nuvem. Nunca acreditou. Por isso, achava, havia perdido o amigo. Olhou a pilha na palma de sua mão e riu-se pensando que se ela tivesse vida, quando findaria? Quando acabasse a bateria decerto, e que vida era aquela, presa dentro de uma caixa preta, sem ver a luz do sol, somente enviando energia para o controle remoto funcionar, se não funcionasse mais enterraria aquela pobre alma positivo-negativa no cemitério das pilhas, dentro de uma caixa encostada em algum canto qualquer. Eram inconscientes aqueles seres inertes, porém com vida e que nos rodeavam: mesas, cadeiras, réguas, tesouras, teriam sentimentos? As unhas? Os cabelos sentiam? Se fizerem parte de um ser sentimental, os cabelos também sofriam com os sentimentos? Riu-se desse atroz pensamento e levantou os olhos jurando de mãos juntas que nunca mais pentearia os cabelos para que não se machucassem, coitadinhos. Ligaria para o amigo sim e falaria sobre tudo isso que pensava e analisava como poderiam as coisas ter vida. 
Sabia exatamente a reação que seu amigo teria, de mudez, da não respeitabilidade, do sofrimento em ver alguém que não comungava com os mesmos sentimentos que ele, um eterno sentimental, um cuidador de coisas e sentimentos alheios, ele mesmo o próprio ser panvitalício. Não perderia essa discussão por nada na vida, mas não achava o telefone e não havia ainda largado a pilha e sentiu o braço doer de repente; encostou-se à parede segurando o braço e largando a pilha que caiu fazendo barulho no chão e riu-se dizendo “coitadinha, machucou?”.
Sentiu outra fisgada no braço que fez com que caísse no chão estertorando de dor e logo uma náusea profunda invadiu todo o seu corpo e pensamento, seguido de uma luz muito forte; antes do desmaio abriu infimamente os olhos e deu de cara com a pilha próxima de si talvez a rir-se das elucubrações feitas anteriormente e um breu terminou por encerrar as pálpebras, deitado em algum lugar, sem pensamentos, inconsciente.
Os minutos passavam rapidamente. Lembrou-se que tinha que ligar para aquele amigo sobre aquela palavra que não conseguia mais lembrar, sobre o que, qual era o assunto. Por que havia uma pilha no chão não sabia precisar, nem tentou levantar porque não podia e nem queria, havia terminado o domingo? Novamente a inconsciência. Os minutos passavam rápidos e incólumes pelo tempo da vida, uma luz muito forte o fez assustar-se e questionar o que fazia deitado no chão, ao lado de uma pilha AAA. Aquele amigo já havia saído? “Que dor é essa que sinto pelo corpo todo?” e em seguida um torpor de alívio o invadiu, e escutou o silvo de uma campainha a tocar insistentemente. Fechou os olhos.
Sentiu um solavanco chacoalhando todos os ossos do seu corpo e alguém a sacudi-lo com força e determinação. O domingo havia terminado, amanhã é segunda-feira, dia de recomeçar. Hoje é segunda-feira? Os filhotinhos das pombas haveriam nascido; a pilha jazendo numa caixa de entulhos e descartes, o telefone do amigo em cima da mesa, o telefone fora do gancho, o pai a lhe chamar para verem as andorinhas revoando silenciosamente através das árvores vivas e verdejantes. E então novamente a dor no braço, porém com uma sensação de bem estar de imortalidade que encaixou de chofre em seu peito, respirou longamente, ainda era domingo, poderia usar a pilha por mais algum tempo e admirar as andorinhas revoando junto com as lembranças de seu pai distante. Dormiria somente depois que falasse com o amigo.

Tinham muito a conversar.

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