quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O sonambulismo


Por Michele Calliari Marchese

Como todo mundo sabe, o sonambulismo é um pequeno distúrbio do sono e acomete o vivente de vez em quando. Existem pessoas que nunca terão o privilégio de sonambular por aí, encontrando portas trancadas a chave, tendo essas mesmas chaves escondidas em algum lugar recôndito. Quem sonambula não espera que as chaves estejam escondidas, mesmo porque precisam de caminho livre para andar e fazer o que se precisa fazer durante esses incríveis episódios em que o corpo está ativo e a mente, inativa. 
O Ismael e a Jussara se conheceram numa loja enquanto pagavam suas respectivas contas. Era uma terça-feira. Se fosse na sexta-feira seguinte nunca teriam se conhecido e também acho muito difícil que tivessem se casado –como se casaram– dois anos depois, envolvidos pelo amor e pelo sonambulismo em comum e tudo porque a atendente perguntou por perguntar o motivo de o dedo mindinho da Jussara estar com uma tala de palitos de picolé envolto em esparadrapos. 
A Jussara contou sem meias palavras que devido a um sonambulismo ocasional havia tirado seu aparelho de silicone (aquele que evita o ranger dos dentes durante a noite) e não sabia onde tinha colocado; no cabo de uma semana procurando encontrou-o entre o estrado e o colchão, escondido. E o dedo acabou quebrando quando entalou de mau jeito no estrado para pegar o aparelho. Era isso. O Ismael que ouvira tudo atentamente brilhou os olhos e cutucou o ombro da Jussara para dizer-lhe num sussurro que também era sonâmbulo. Aquele sussurro arrebatador, pensou ela, era a coisa mais linda que escutara em sua vida; “sou sonâmbulo”; e essas palavras ficaram impregnadas na lembrança de sua vida. “Sou sonâmbulo” teve um significado maior que a compra que fizera há um mês e olhou com enlevo aquele sonâmbulo em pé atrás de si, segurando o carnê da loja com uma das mãos e a outra mantinha junto da perna; que garboso, pensou e pensou em inúmeras coisas e assuntos sonambulísticos que teriam daquele momento em diante e aguardou que a atendente lhe devolvesse o troco.
Disse tchau levantando a mão cujo dedinho seguia hirsuto e o Ismael pagou a conta rapidamente para poder conversar com aquela mulher tão igual a si, tão perfeita pensou, não que os sonâmbulos fossem perfeitos, mas nunca encontrara alguém com quem pudesse partilhar as longas histórias noturnas e poderia, quem sabe, ver no futuro como se comportaria no lugar dela e vice-versa. Seria uma bela experiência de vida e alcançou Jussara na calçada e disse que não se preocupasse com esse tipo de acidente ocasionado pelo sonambulismo e ela respondeu que não foi durante o sonambulismo que quebrara o dedo mindinho, mas sim acordada e ele mencionou aquela vez, muito tempo atrás quando o Cometa Halley poderia ser visto a olho nu da Terra e que seu pai o agarrou pelo pijama, pois estava com um pé na janela do terceiro andar e só depois de desperto lembrou que passara o dia pensando em ver o tal cometa e que sonhara com ele durante a noite e sonâmbulo tratou de ver pela janela o cometa Halley. Riram os dois, que perigo, pensou ela, cair de uma altura assim considerável era a morte certa, porém o Ismael contou que a sua falecida bisavó havia ensinado à sua avó e, por conseguinte à sua mãe, que não se pode acordar um sonâmbulo pelo motivo de ele ficar mudo e nunca mais na vida conseguiria falar e que sonâmbulos não se machucam. Tudo isso era uma grande crendice cultural, mas que de qualquer forma informou à Jussara que a família inteira sofria de sonambulismo senão não haveria motivo da bisavó ensinar tais coisas.
Ficou feliz e na felicidade daquele assunto interminável na calçada ela pediu o nome dele e disse-lhe seu nome e combinaram de se encontrar no fim daquela semana na sorveteria que tinha ali perto, às oito.
Dentre as muitas façanhas contadas diariamente, ela a ele e vice versa, foi que ele descobriu que ela tivera espinhas no rosto e passava Minâncora antes de dormir na crendice da fala da vó que dizia que as espinhas secavam com o dito creme, porém o máximo que conseguiu foi assustar o namorado da sua irmã, num dos muitos ataques de sonambulismo com o rosto inteiro coberto de Minâncora, assustando-o e fazendo-o prolongar o namoro por mais algum tempo antes de saber por sogro e sogra que a cunhada sofria dos males noturnos.
Ela, porém descobriu que ele tinha pendores catastróficos e que subira no peito do irmão –dormindo– para salvá-lo dos troncos de árvores que caiam em cima da casa sem telhado. Depois que foi despertado pelo irmão apavorado foi que descobriu que tinha o coração acelerado e estava de pé em cima do corpo do irmão inerte e assustado pelas atitudes sonambulísticas daquele sonâmbulo sem precedentes. Adorava uma catástrofe, daquelas que ninguém quer ver nem sentir, assim como ela. Será que todo sonâmbulo gosta de hecatombes naturais? Perguntaram um ao outro, quase juntos, e viram de relance que a vida a dois era o certo e decidiram se casar sem responder àquela questão primeira. 

Viveram felizes, revezando os dias para esconder as chaves das portas e o Ismael colocou tela nas janelas para a feliz esperança da chegada dos filhos, vislumbrada pelos sogros. E hoje brigam quando contam quem foi que sonambulou na lua de mel, cada um quer para si o título de primeiro da casa.


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