quarta-feira, 5 de outubro de 2016

A vida por um chocolate


Por Michele Calliari Marchese

Já devorei uma caixa de bis e tenho no colo uma barra de meio quilo de chocolate. Resolvi escrever para resistir à tentação de abrir a lâmina prateada com relevos do mais fino chocolate suíço. Têm alguns desenhos de favos de mel, amêndoas e imaginando a gostosura me perco nos pensamentos mais existenciais possíveis. Eu posso comer essa gostosura e minha avó, podia?
Creio que os chocolates de outrora além de caros eram inacessíveis nesses rincões de Deus dará; creio que quando chegavam eram dados sem pestanejar às crianças e bebês para que soubessem o que é bom na vida, para que se apercebessem que por trás do suor da lida existe o doce que nos faz fechar os olhos de satisfação e suspirar longamente como se fosse a hora derradeira.
Por falar em hora derradeira gostaria que me colocassem nas mãos cruzadas uma meia dúzia de chocolates crocantes ou o que acharem melhor; nada de rosários e flores; mas não misturemos assuntos, o caso é extremamente pessoal.
E a pauta é a seguinte: Como é que conseguimos comer tanto chocolate na TPM sem remorsos e sem farelos, sem pensar nas que nos precederam? Impossível. Isso faz parte da mulher: chocolate e existencialismo.
Chocolate porque é chocolate, não precisa de explicação, porém o existencialismo é a coisa mais profunda e mais real naquele período mensal. Eu, por exemplo, como chocolate e fico pensando naquelas que tinham vontade de comer alguma coisa e não sabiam o quê! Isso é o pior! Não sabiam o que queriam para satisfazer aquele vazio no peito, nas glândulas salivares e do êxtase supremo em ver a lixeira cheia de pacotes vazios.
Como eu. Devo estar precisando de mais uns cinco quilos para a completude divina, mas e as outras? E as outras? Não é cinismo, é altruísmo. Imaginemo-nos sentadas em algum tapete felpudo comendo chocolates de todos os tipos, menos os com recheio de licor (nada contra quem gosta), dando as mãos, acendendo incensos, chorando as amarguras inconsoláveis das outras e nos empanturrando de chocolate e mais chocolate. Deitaremos no chão para ver as estrelas e conversaremos sobre coisas do tipo “como nasceu o universo” para então ouvir daquela sabidinha vestida de blusa preta que faz mal comer de barriga para cima e então notaremos que nós todas vestimos preto naquele dia como numa comemoração de irmãs radicadas nessa cidade sombria sob muitos aspectos, porém iluminada pelos seus cidadãos e a frase ficou tão bonita que aquela outra “mana” de preto também resolveu comprar mais chocolate para celebrarmos a vida xanxerense.
Penso que a despedida seria caótica: “sua blusa é linda, onde comprou?” e não teríamos papéis para anotar tantos nomes, telefones e locais fornecedores de utilidades da tensão pré menstruástica; alguma “irmã” riria sem parar da quantidade de segredos que ouviu e não falou nenhum, outra choraria porque perdeu o celular com as fotos do namorado que ela bem gostaria de rasgar, porém não podia porque não sabia como fazê-lo sem imprimir as fotos. Outra pedia por um espelho, não poderia sair na rua sem maquiagem depois de todas aquelas lágrimas, esqueceríamos imediatamente o nascimento do universo e todas as suas nuances cor de rosa piamente defendida por uma das irmãs de Xavantina e também não poderíamos sair de nosso tapete felpudo sem ouvir as fofocas do centro de Faxinal dos Cabritos.
A de cabelo curto vestida com uma calça preta sugeriu que “nada melhor que um chocolatinho quente” para ouvir os comentários elucidativos daquela irmã –de preto também– que diria que há estudos científicos que comprovam que o chocolate ajuda a manter o Mal de Alzheimer longe daquelas cabeças férteis e lindas. Uma companheira riu do “lindas”, porém as outras deixaram para lá, afinal, pensaremos, somos bonitas à nossa maneira e do nosso jeito, porém acredito que a irmandade iria para o fundo do poço no segundo mês de encontro. Talvez não sobrasse tanto dinheiro assim para alimentar tantas bocas necessitadas de cacau; mesmo que cada uma levasse a quantia certa para o consumo tem sempre aquela que come mais porque o desespero é maior. Choremos!

É isso. A crônica chegou ao fim e com ela aquele lindíssimo chocolate que estava dormitando no colo. Não era para comer, era para escrever. Desculpe, mas não há resistência alguma das injustiças do existencialismo humano que me façam guardar, mesmo que numa gaveta bem pertinho de mim, aquela barra de meio quilo de chocolate com favos de mel e amêndoas. Nem minha vó.


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