quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Despedida


Por Michele Calliari Marchese

Hoje escrevo para despedir-me. Despedir-me de alguns dos meus melhores personagens. Foi um processo lento e doloroso que começou com a morte do delegado mais intrépido que a Campina da Cascavel conheceu. Mesmo com a possibilidade de o novo delegado suprir incansavelmente com a segurança da cidade, ficou uma lacuna sem respostas e sem perguntas. Adoeci no dia em que escrevi sobre seu passamento e a dor foi tão grande que achei que ia morrer. Passei três dias em completa miséria literária, mas era necessário, faço o que?
Despedi-me vagarosamente e sem piedade do Padre Dimas, suguei tudo o que dele poderia tirar, mesmo em sua plácida velhice. Não o enterrei, é certo. Sucumbiria no primeiro parágrafo e covardemente deixei-o morto sem uma linha sequer. 
Escrevi sobre diversos velórios, mortes incomuns e personagens nem tanto. Todos de alguma forma marcaram minha existência de forma brusca e intolerável. A cada novo féretro escrito, ia-se junto um pedaço de mim. Uma sensação ou um desconsolo que não consigo definir. Muitos foram de alívio, outros de pesar, porém a maioria mostrava como o silêncio daquele dia poderia ser devastador. São as perdas, tão comuns. 
No lugar do Padre Dimas surge outro grande batizador de crianças nas décadas de 1920 e 1930, o Frei Leonardo. Ele existiu e fazia o trabalho junto com o Frei Dimas durante a colonização do Grande Chapecó, aqui, na Campina da Cascavel.
Frei Leonardo tem todos os ingredientes para um bom causo: jovem, cheio de esperanças e totalmente incrédulo quanto à fé e a religião. Por várias vezes tenta largar a batina, porém ouve a voz interior de sua mãe, cujo sonho era ver o primogênito ordenar-se padre e, submisso, não dá o passo decisivo. Por conta disso, passa a vida cultivando uma paixão platônica – ninguém nunca soube – e acariciando em seus mais ternos sonhos a construção de uma família com a mulher amada. Mas vocês já leram sobre isso.
Gostei de encontrar os Diários do Padre Dimas, deu-me mais esperança quanto ao futuro da Campina da Cascavel. Ao todo, 210 cadernos escritos numa letra apurada e definitiva. Lá estavam descritos todos os batizados e casamentos, construções e reconstruções. Inclusive de sua própria vida. Creio que ele daria cabo dos diários se pudesse, porém aquele sequestro execrável o deixou sem forças e meio desmemoriado. Jamais imaginou que os cadernos seriam lidos por alguém e muito menos por mim, sua criadora. Eu sabia tudo sobre ele, menos sobre os diários. Como é que um personagem, fruto da imaginação consegue burlar o olhar atento de sua mãe – que sou eu – e passar incólume por anos a fio, sem deixar rastros? 
Mais um mistério sem solução. 
Tomei a resolução de queimar os diários – depois de lê-los – para que ninguém jamais soubesse dos pormenores de sua existência e do que lhe ia à alma. Um homem de fino calibre, estudioso de todos os assuntos, com a maior fé que alguém poderia suportar para si e capaz de espantar o demo. Juro.
Senti o mesmo que uma mãe sente ao perceber seu filho entrando na adolescência misteriosa. O que se passa? Por que tantos diários, meu Deus?
Nunca saberei dizer, mesmo sendo ele criatura oriunda da massa mais cinzenta do meu cérebro. 
Falando em massa cinzenta, naqueles idos anos gloriosos de crescimento comunitário para a Campina da Cascavel, aconteceu que o Frei Leonardo, exausto de tanto ler os famigerados diários do Padre Dimas, resolveu de comum acordo comigo, ir queimando um a um, conforme íamos lendo. 
Cada caderno queimado gerava uma nuvem de fumaça que encobria a cidade inteira, como um nevoeiro; e era preciso mais de dez dias para a dissipação daquela nuvem de segredos alheios que perambulavam ao sabor do vento e adentravam casas e narizes, tomando conta de tudo. Não se enxergava um palmo na frente do nariz e muita das vezes era necessária uma vela acesa durante o dia para as mulheres poderem cozinhar. Os homens não conseguiam trabalhar na lida, que dirá participar da missa.
Obviamente que as missas foram canceladas em decorrência de tão nebulosa desventura e o Frei Leonardo resolveu então queimar um diário por mês, para que a população pudesse trabalhar nos vinte dias restantes. Negava veementemente saber a origem de tão descabelado tempo e nunca em sua vida contou a alguém que era ele o autor da serração, a menos que tenha escrito em diários, dos quais também não tenho conhecimento. Paciência. Cada um com os seus segredos.
Naquela época o povo acostumou-se com aquela fumaça, imaginem que foram 210 meses de neblinas ocasionais e que duravam em média de dez a quinze dias. Elas não cheiravam a queimado como todas as fumaças de papéis queimados fedem, os cadernos do Padre Dimas sequer tinham pequenos traços de bolor em sua emanação. Acredito que eram perfumados conforme o gosto pessoal.

Foi isso o que aconteceu. 


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