terça-feira, 16 de agosto de 2016

O assalto ao trem pagador


Por Michele Calliari Marchese

Numa tarde de calor infernal, quando as almas suadas recorriam ao frio da igreja para terem algum conforto foi que o Frei Leonardo resolveu arrumar os arquivos e notas que ficaram encaixotados desde que o Padre Dimas morreu.
Com a construção da nova sacristia, havia uma pequena despensa para arquivamento de papeis e outros livros importantes de anotações. Frei Leonardo catalogava e organizava tudo quando deu de cara com vários caderninhos amarrados com um cordão: os diários do Padre Dimas.
Pois o frei não sabia se lia ou se os deixava guardados, ou quem sabe até destruídos, mas para isso precisava saber do conteúdo para poder resolver aquele conflito interno, e claro, acalmar a curiosidade.
Sentou-se no chão, ergueu a batina até os joelhos, tirou os sapatos e as meias – naquele calor dos infernos, não conseguia ficar muito tempo vestido – e começou a leitura. A primeira delas contava sobre um homem desesperado, arrependido pelas graças da fé e pedindo ajuda ao Padre Dimas para que fosse acolhido e perdoado contando a história mais fantástica de todos os tempos. O assalto ao trem pagador. 
Esse homem, cujo nome fora resguardado no caderninho, apareceu na sacristia segurando o chapéu no peito e a cabeça baixa deixava cair muitas lágrimas. Era um dos vinte e sete jagunços contratados pelo famigerado Zeca Vacariano para assaltar as mulas que traziam o pagamento da empreitada da construção da estrada de ferro que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul.
Zeca Vacariano era dono de um armazém na localidade onde hoje é a cidade de Pinheiro Preto, era também empreiteiro de dois trechos dos trilhos da famosa estrada de ferro, e, devido à má administração, não conseguia pôr os salários dos empregados em dia. Foi num sábado à tarde que começou a arquitetar o plano que seria o mais famoso e misterioso de todos os tempos, conjuntamente com alguns empregados dispostos a qualquer coisa por dinheiro.
Dono de informações preciosas bastava-lhe aguardar a chegada do trem em Ponta Grossa, de lá o dinheiro viria em lombo de mula, pois a estrada não estava pronta para a máquina. As mulas passariam em frente ao seu comércio e por muitos dias aqueles assaltantes esperaram de armas em punho e muito silenciosamente. Era muito dinheiro, mais de 360 contos de réis, uma fortuna, que se fosse bem dividida entre eles, poderiam viver ricamente longe dali.
Entraram na mata em frente ao armazém. Nem o suor e as palpitações da ansiedade foram capazes de tirar aqueles homens de seus postos, tampouco suas mãos tremiam e quando atiraram, foi para matar.
No meio do pó e do calor primaveril, três corpos estendidos no chão, um ferido e um fugido em meio ao tiroteio, fizeram de Zeca Vacariano um dos homens mais ricos do Estado.
A operação não levou tempo algum, e munidos daquele malote extraordinário, embrenharam-se mata adentro. Caçados interminavelmente pelas tropas federais, estaduais e pelo corpo de segurança da empresa construtora, nunca foram vistos, nenhum rastro foi encontrado e tampouco nenhuma notícia foi fornecida pela gente da região.
Esse homem que estava nas pequenas letras do diário do Padre Dimas contava com 10 Contos de Réis em uma pequena bolsa que levava amarrada à cintura. Dizia que era dinheiro do diabo, mas que não havia disparado nenhum tiro e pedia a redenção, o perdão, e precisava trocar de nome e de vida. Daria de bom coração parte do dinheiro aos pobres do Padre Dimas e com o restante compraria uma fazenda para fazer a prosperidade chegar à Campina da Cascavel.
O Padre Dimas chamou o tabelião e o delegado. O delegado prendeu o homem e mais tarde acabou absolvendo-o por falta de provas enquanto o tabelião preenchia vários documentos e o Padre distribuía aquela parte do dinheiro aos pequenos caboclos que não haviam sido expulsos daqui quando iniciou a colonização pelos migrantes gaúchos.
O Frei Leonardo, que não conseguia mais ler porque estava escuro, deu um suspiro de indignação, porém ao acender a vela para continuar a leitura, perdeu a página que estava lendo quando o livro fechou-se sem querer, e buscando freneticamente onde havia parado a leitura, lia pequenos trechos de datas posteriores onde o nome do Coronel Vitório aparecia com frequência, sendo o maior benfeitor da Campina da Cascavel durante o tempo em que ficou vivo.
Folhou os diários seguintes, e aquele nome aparecia com algum bem doado, alguma compra realizada ou doações incalculáveis para quem necessitasse de ajuda, porém, numa determinada festa natalina, sua verve de jagunço falou mais alto quando deu cabo do Papai Noel ao término do evento.
“O Padre Dimas sempre soube de tudo”, disse em voz alta Frei Leonardo, que fez as contas muito apressadamente porque naquela época 1 conto equivalia a 1 quilo de ouro. Esse suposto jagunço do trem pagador tinha 10 contos e bem poderia ser o Coronel Vitório de outrora. Frei Leonardo não dormiu naquela noite e tampouco nas noites seguintes. Quis contar a alguém, mas não foi capaz de conspurcar os segredos do melhor homem do mundo.

* * *


Para esclarecimento ao leitor, hoje 1 grama de ouro vale R$ 95,50. O dinheiro do assalto se fosse convertido para os dias atuais (em ouro), dariam aproximadamente 35 milhões de reais. Porém há contestações quanto à quantia roubada. Os assaltantes nunca foram encontrados e há suposições de que tenham se matado entre si ou que foram ao Uruguai. Apenas especulações ao mais misterioso assalto acontecido em Santa Catarina.


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