quarta-feira, 6 de julho de 2016

O Messias


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu quando o padre Dimas já estava bem velhinho e aguardava a vinda de um novo pároco para substituí-lo na lida divina. Esperava aposentar-se ainda naquele ano –faria 95 anos em setembro–, tinha planos de somente atender a população que precisasse de palavras de consolo. 
No começo de uma tarde qualquer, bateu na sacristia um homem que trajava roupas pretas desbotadas, uma barba de semanas a esconder-lhe o sorriso sem alguns dentes e um olhar sem viço, sem brilho; o olhar dos maus. O padre Dimas teve uma péssima impressão da visita e mais ainda quando aquele homem respondeu que estava ali a mando do serviço de Deus e que vinha para ficar. 
Convidado a entrar, o barbudo que atendia pelo nome de Izaldo, comentou que tinha que começar os serviços religiosos naquela paragem e pediu onde ficava o seu quarto para guardar os poucos pertences que trazia e que tinha fome e ansiava por um banho. Pediu ao padre que desse aquele cavalo amarrado lá fora, desse para algum vivente necessitado que fizesse bom uso do animal.
O padre acostumado com todo o tipo de embuste que assola a cidade resolveu guardar o animal em local escondido, pois que poderia ser fruto de roubo e escreveu uma longa carta para a prelazia de Palmas, onde, naquela época funcionava o bispado da região. Além dos diversos assuntos de batizados e casamentos, quis certificar-se de que o dito do Izaldo era mesmo aquele que viria a substituí-lo.
Mandou a primeira pessoa que passou por ali entregar a carta ao caixeiro viajante do Paraná que se hospedava no hotel, para que fosse entregue sem mais demora em mãos e que voltasse com a resposta.
Enquanto a carta viajava a passos lentíssimos, o Izaldo resolveu rezar a missa daquele dia da chegada, mas o padre não permitiu. Explicou que não tinha os documentos comprovando que era ele de fato seu sucessor, não que desconfiasse, mas era preciso assinar folhas e reconhecimentos. O Izaldo se ofendeu e num assomo de maldade, deu um empurrão no padre Dimas que o fez cair de costas no chão, machucando-o com severidade e impossibilitando-o de pedir ajuda a quem quer que fosse. Arrumou o padre acidentado em cima da cama, tirou-lhe os sapatos e cobriu com a coberta que trouxera de viagem, e que cheirava a suor. Ao padre Dimas somente restou-lhe chorar as dores que sentia e rezar para que alguém entrasse na igreja e solicitasse a sua presença.
Porém um entra e sai de gentes aconteceu durante muito tempo e todos pediam do padre Dimas, ao que o novo padre respondia que tinha se aposentado e ido viver no lar dos padres, no Paraná, que não se condoessem, pois ele –padre Izaldo– estava lá para livrar as almas do inferno e que se o padre Dimas não havia se despedido, era porque ele queria que fosse assim, sem despedidas, sem comoções por parte do povo.
Rezava as missas com um arrepio de felicidade.
Quem desconfiou de toda a coisa foi o dono do lugar onde estava escondido o cavalo do Izaldo. Ele sabia de tudo porque o padre Dimas havia confiado nele todas as suas dúvidas, inclusive relatou todo o teor daquela carta enviada a Pato Branco. Como a situação da Campina da Cascavel era deveras assustadora, pois com a morte do delegado, os outros que vinham para trabalhar aqui não tinham a frieza para aguentar tantos assombros e calamidades e partiam à noite como jagunços foragidos e a cidade estava à mercê de tudo e então ele decidiu chamar o filho do tabelião –já morto– e contar as coisas e interceptar aquele caixeiro viajante do Paraná que decerto traria a resposta para todas as perguntas e mais: que eles fossem, ao frio da madrugada, espreitar a sacristia para ver mais sobre aquele homem, o Izaldo.
O filho do tabelião aceitou na hora, pediu um tempo para que fosse à casa pegar a arma do pai e que logo voltaria para resolverem o imbróglio. 
De madrugada, tiritando de frio e de medo, Júnior – o filho do tabelião –e o Jurandir, aquele que escondeu o cavalo do Izaldo– foram pé ante pé espiar na janelinha da sacristia, porém estava muito escuro e não viram nada somente o breu e os vidros embaçados do calor do quarto. Já estavam assustados e ficaram ainda mais quando escutaram gemidos baixinhos. 
Não sabiam o que fazer e tomaram a resolução que acabou salvando a vida do padre Dimas; com a força que o medo embute nos músculos, Jurandir deu um pontapé e arrombou a porta destrancada. Encontraram o padre Dimas suando as dores da queda e o Júnior num ímpeto carregou-o para fora e levou-o sem mais demora à sua, onde a mulher cuidaria dos ferimentos e mandaria buscar o médico; e o Jurandir com um pedaço de pau na mão foi atrás do Izaldo que dormia placidamente em cima da mesa de altar, vestindo as roupas do padre Dimas e tinha os terços enrolados em seu rosto de doente e aquela visão quase fez Jurandir vomitar de aversão. O Izaldo acordou assustado e começou a falar coisas sem nexo, sobre a vinda de sabe-se lá quem, que ele era o Messias e outras tantas que deixaram o Jurandir estupefato.
Amarrou as mãos daquele meliante com a corda das vestes do padre e o dia raiou. Justamente quando o Júnior chegara para ajudar o Jurandir, apareceu também aquele caixeiro viajante com a carta resposta do Bispado de Palmas onde dizia não reconhecer nenhum pároco chamado Izaldo e que mandariam frei Leonardo no mês seguinte para dar sequencia ao excelente serviço prestado pelo padre Dimas à população da Campina da Cascavel.
O Izaldo ficou preso na despensa da delegacia, cuidado pelo revezamento feito entre os homens da cidade até que um novo delegado fosse nomeado e então seria encaminhado ao presídio de Curitiba, aquele, aonde o preso nunca chega. 


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